Havia
um rapaz à minha espera, agachado, rente ao muro. Abriu as mãos e
vi que estavam cheias de um lume verde, furtivo, uma matéria
encantada que rapidamente se dispersou na escuridão. “Pirilampos”,
segredou. Um rio deslizava atrás do muro, opaco, poderoso, arfando
fatigado feito um mastim. Atrás dele começava a floresta. O muro,
baixo, em pedra bruta, deixava ver a água negra, as estrelas
correndo no seu dorso, a densa folhagem ao fundo – como num poço.
O rapaz alçou-se para cima das pedras, sem esforço, ficou um
momento imóvel, a cabeça afundada na noite, e depois saltou para o
outro lado. No sonho eu era um homem ainda novo, alto, a tender para
o gordo. Custou-me um pouco a galgar o muro. Depois saltei.
Ajoelhei-me na lama e o rio veio lamber-me as mãos.
“O
que é isto?”
O
rapaz não respondeu. Estava de costas para mim. A pele dele era
ainda mais negra do que a noite, lisa e lustrosa, e também nela,
como no rio, rodopiava um carrossel de estrelas. Vi-o avançar pelo
metal das águas até desaparecer. Ressurgiu, instantes depois, na
outra margem. O rio, deitado aos pés da floresta, tinha finalmente
adormecido. Continuei sentado ali, muito tempo, com a certeza de que
se me esforçasse, se ficasse inteiramente imóvel, desperto, se me
tocasse na alma, eu sei lá!, de certa maneira o fulgor das estrelas,
conseguiria escutar a voz de Deus. E então comecei realmente a
ouvi-la, e era rouca e chiava como uma chaleira ao lume. Esforçava-me
por entender o que dizia quando vi emergir das sombras, mesmo à
minha frente, um perdigueiro magro, com um pequeno rádio, desses de
bolso, preso ao pescoço. O aparelho estava mal sintonizado. Uma voz
de homem, profunda, subterrânea, lutava com dificuldade contra o
tumulto eléctrico:
– O
pior pecado é não amar – disse Deus, a voz macia de um cantor de
tango: – Esta emissão tem o patrocínio das Padarias União
Marimba.
Depois
o cão afastou-se, mancando um pouco, e tudo voltou a ficar em
silêncio. Saltei o muro e fui-me embora, em direcção às luzes da
cidade. Antes de alcançar a estrada ainda vi o rapaz, rente ao muro,
abraçado ao perdigueiro. Olhavam para mim, os dois, como se fossem
um único ser. Voltei-lhes as costas mas continuei a sentir (como se
alguma coisa escura me batesse por trás) o olhar desafiador do cão
e do menino. Acordei em sobressalto. Estava numa fenda úmida.
Formigas pastavam entre os meus dedos. Fui à procura da noite. Os
meus sonhos são, quase sempre, mais verossímeis do que a realidade.
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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