terça-feira, 10 de novembro de 2015

Sonho nº 1

Atravesso as ruas de uma cidade alheia esgueirando-me por entre a multidão. Passam por mim pessoas de todas as raças, de todas as crenças e de todos os sexos (durante muito tempo julguei que só houvesse dois). Homens de negro, óculos escuros, segurando pastas. Monges budistas, rindo muito, alegres como laranjas. Mulheres diáfanas. Gordas matronas com carrinhos de compras. Adolescentes magras, em patins, breves aves esgueirando-se entre a multidão. Meninos em fila indiana, com fardas escolares, o de trás segurando a mão do que vai na frente, na frente de todos uma professora, atrás de todos outra professora. Árabes de djelaba e solidéu. Carecas passeando pela trela cães assassinos. Polícias. Ladrões. Intelectuais absortos. Operários em fato macaco. Ninguém me vê. Nem sequer os japoneses, em grupos, com máquinas de filmar, e olhos estreitos atentos a tudo. Detenho-me em frente às pessoas, falo com elas, sacudo-as, mas não dão por mim. Não falam comigo. Há três dias que sonho com isto. Na minha outra vida, quando tinha ainda forma humana, acontecia-me o mesmo com certa frequência. Lembro-me de acordar depois com a boca amarga e o coração cheio de angústia. Acho que nessa época era uma premonição. Agora é talvez uma confirmação. Seja como for já não me aflige.
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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