Atravesso
as ruas de uma cidade alheia esgueirando-me por entre a multidão.
Passam por mim pessoas de todas as raças, de todas as crenças e de
todos os sexos (durante muito tempo julguei que só houvesse dois).
Homens de negro, óculos escuros, segurando pastas. Monges budistas,
rindo muito, alegres como laranjas. Mulheres diáfanas. Gordas
matronas com carrinhos de compras. Adolescentes magras, em patins,
breves aves esgueirando-se entre a multidão. Meninos em fila
indiana, com fardas escolares, o de trás segurando a mão do que vai
na frente, na frente de todos uma professora, atrás de todos outra
professora. Árabes de djelaba e solidéu. Carecas passeando pela
trela cães assassinos. Polícias. Ladrões. Intelectuais absortos.
Operários em fato macaco. Ninguém me vê. Nem sequer os japoneses,
em grupos, com máquinas de filmar, e olhos estreitos atentos a tudo.
Detenho-me em frente às pessoas, falo com elas, sacudo-as, mas não
dão por mim. Não falam comigo. Há três dias que sonho com isto.
Na minha outra vida, quando tinha ainda forma humana, acontecia-me o
mesmo com certa frequência. Lembro-me de acordar depois com a boca
amarga e o coração cheio de angústia. Acho que nessa época era
uma premonição. Agora é talvez uma confirmação. Seja como for já
não me aflige.
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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