O
homem lançou um olhar prolongado a Joad. Seus olhos castanhos
pareciam inundados pela luz, a íris salpicada de pequenos pontos
dourados. Os músculos duros do pescoço se lhe retesaram mais.
Joad
permaneceu na sombra, quieto, a luz lançando manchas no solo. Tirou
então o boné, enxugou com ele o rosto suado e deixou-o cair no
chão, juntamente com o casaco enrolado.
O
homem descruzou as pernas e arranhou o chão com os dedos do pé.
Joad
disse então:
— Mas
tá um calor dos diabos nessa estrada.
O
homem o fitou, interrogativo:
—
Escute, você não é o Tom Joad, filho
do velho Tom?
— Sou,
sim — anuiu Joad. — Vou indo pra casa.
—
Aposto que você não se lembra de mim —
disse o homem. Sorriu, exibindo uns dentes grandes, cavalares. —
Não, não pode mesmo se lembrar. Você estava sempre ocupado em
puxar as trancinhas de uma menina quando eu lhe ministrava a Sagrada
Comunhão. Parecia até que queria arrancar os cabelos da menina.
Talvez não se lembre mais, mas eu me lembro bem. Tanto você como a
menina, por castigo, vieram juntos à presença de Jesus; foram
batizados juntos nas valas de irrigação. Berravam e se debatiam
feito dois gatinhos bravos.
Joad
olhou-o pensativamente e desandou a rir.
— Ah,
já sei. O senhor é o pregador. Sim senhor, agora me lembro. Não
faz uma hora, tava até falando do senhor.
— Eu
era o pregador — falou o homem, grave. — Reverendo Jim
Casy, da Sarça Ardente, para glorificar o nome de Jesus.
Costumava ter a vala de irrigação tão cheia de pecadores que
metade deles morria afogada. Sim, mas isso já acabou. Agora sou
apenas Jim Casy... e nada mais. E cheio de ideias pecaminosas, que
contudo me parecem bastante razoáveis.
— A
gente tem que ter ideias, quando se vive pensando o tempo todo —
disse Joad. — Eu me lembro bem do senhor. Fazia umas pregações
muito boas. Me lembro até que uma vez deu o sermão todo andando de
quatro, gritando como que possuído pelo demônio. Minha mãe gostava
muito do senhor. E a vó disse que o senhor era dominado pelo
Espírito.
Sua
mão explorou o bolso do casaco e retirou a garrafinha de uísque. A
tartaruguinha moveu uma perna, mas Tom a envolveu com mais cuidado.
Destampou o frasco e convidou o outro:
— Quer
um trago?
Casy
pegou a garrafinha e ficou a segurá-la, pensativo.
— Agora
não faço mais sermões. O Espírito não reside mais na minha
gente; pior que isso: o Espírito não mais reside em mim. É claro
que de vez em quando o Espírito me toca, e aí eu faço uma oração,
ou então quando me dão comida, retribuo com uma bênção. Mas meu
coração é fraco.
Joad
esfregou novamente o suor do rosto com o boné.
— Mas
o senhor não é assim tão santo para recusar um trago, é? —
disse.
Casy
só agora pareceu enxergar a garrafa que segurava. Encostou-lhe o
gargalo aos lábios e tomou três longos goles.
— É
uma boa bebida — elogiou.
— Tem
que ser boa — disse Joad. — É da fábrica. Custou um dólar.
Casy
tomou outro gole antes de entregar a garrafa.
— Sim,
senhor! — falou. — Sim, senhor!
Joad
tomou-lha e, por polidez, não limpou o gargalo com o punho antes de
beber também. Pôs-se de cócoras e guardou a garrafinha junto do
casaco. Seus dedos encontraram uma vara fina, boa para escrever seus
pensamentos no chão. Varreu as folhas, desenhou um quadrado e alisou
a poeira. E então começou a desenhar pequenos círculos.
— Faz
tempo que não vejo o senhor.
—
Ninguém tem me visto — disse o
pregador. — Tenho andado por aí sozinho, pensando. O Espírito
continua em mim com a mesma força, só que já não é mais o mesmo.
Não tenho mais aquela certeza sobre uma porção de coisas.
John
Steinbeck, In As vinhas da ira
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