“[...] Um
verdadeiro poder não pode ser construído exclusivamente sobre
vitórias fáceis. O terror que ele quer despertar, e no qual está
propriamente interessado, depende da massa de vítimas.
Todos
os conquistadores famosos da história trilharam esse mesmo caminho.
Posteriormente, foram-lhes atribuídas virtudes de toda espécie.
Após séculos, historiadores ainda comparam conscientemente as
qualidades de tais conquistadores, para — como acreditam — chegar
a um juízo exato sobre eles. A ingenuidade fundamental dessa
empreitada é palpável. De fato, estão ainda sob o fascínio de um
poder de há muito ultrapassado. Assim, vivendo numa outra época,
tornam-se contemporâneos daqueles que nela viveram, e algo do temor
que estes sentiam ante a crueldade do poderoso acaba transferindo-se
para eles; não sabem, porém, que se entregam a esses
poderosos, enquanto observam honestamente os fatos. Soma-se a isso
uma motivação mais nobre, da qual não estiveram livres nem mesmo
grandes pensadores: é insuportável ter de afirmar que um número de
seres humanos — cada um contendo em si o conjunto das
possibilidades humanas — foi massacrado em vão, em prol de
absolutamente nada; é por isso que então se passa a buscar um
sentido para tais massacres. Como a história prossegue, é sempre
fácil encontrar um sentido aparente em sua continuidade: cuidando-se
para que tal sentido receba uma certa dignidade. Aqui, porém, a
verdade nada tem de dignidade. Ela é tão vergonhosa quanto foi
aniquiladora. Trata-se exclusivamente de uma paixão privada do
detentor do poder: seu prazer pela sobrevivência cresce com seu
poder; este permite-lhe dar rédeas à sua paixão. O verdadeiro
conteúdo desse poder é o desejo de sobreviver a massas de seres
humanos.
É
mais proveitoso para o detentor do poder se suas vítimas são
inimigos; de qualquer modo, os amigos produzem resultado semelhante.
Em nome de virtudes varonis, exigirá o mais difícil, o impossível,
de seus súditos. Não lhe importa que estes sucumbam na execução
da tarefa. É capaz de convencê-los de que é uma honra fazê-lo por
ele. Através de rapinagens, cujo produto permite-lhes de início
desfrutar, ele os ata a si. Servir-se-á então da voz de comando, a
qual foi como que talhada para seus objetivos (não podemos, contudo,
encetar aqui uma discussão detalhada dessa voz de comando, que é de
extrema importância). É assim que, se entende do que faz, fará
deles massas belicosas, incutindo-lhes ideias sobre a existência de
tantos inimigos perigosos que, por fim, seus seguidores não poderão
mais abandonar a massa de guerra que compõem. É claro que não lhes
revela sua intenção mais profunda; sabe dissimular muito bem e,
para tudo o que ordena, encontra centenas de pretextos convincentes.
É possível que se traia, em sua arrogância, no círculo de amigos
mais íntimos; mas, se assim for, o fará de forma radical, como fez
Mussolini diante de Ciano, ao desdenhosamente chamar seu povo de
rebanho, cuja vida, naturalmente, pouco importava.
Mas
a real intenção de um verdadeiro detentor do poder é tão grotesca
quanto inacreditável: ele quer ser o único. Quer sobreviver
a todos, para que ninguém sobreviva a ele. Quer furtar-se à
morte a todo custo; assim, não deve haver ninguém, absolutamente
ninguém, que possa matá-lo. Jamais se sentirá seguro enquanto
homens, quaisquer que sejam, continuarem existindo. Mesmo seu corpo
de guarda, que o protege dos inimigos, pode voltar-se contra ele. Não
é difícil provar que sempre teme secretamente aqueles a quem dá
ordens. Sempre o assalta, também, o medo dos que lhe estão mais
próximos.”
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
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