quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Não sei para onde vou


A sombra reta do tronco tornou-se mais longa. Joad acocorou-se com mais conforto e alisou novamente a terra, preparando-a para escrever seus pensamentos. Um cão pastor de espesso pelo amarelo vinha trotando pela estrada, cabeça baixa, língua pendente e gotejante. Seu rabo estava caído, embora um pouco encurvado na ponta, e arquejava profundamente. Joad assobiou-lhe, mas o cão apenas o olhou de lado e prosseguiu no trote, como que determinado a chegar a algum lugar definido.
Vai pra um lugar qualquer — disse Joad, um pouco despeitado. — Talvez vai pra casa.
O pregador voltou a filosofar.
Vai pra um lugar qualquer — repetiu. — Isso mesmo, ele vai a um lugar qualquer. Eu não sei para onde vou. Quer saber? Eu fazia aquela gente pular e falar e exortar em altos brados o nome e a glória de Deus, até que eles caíam exaustos. E batizava-os e... sabe o que fazia mais? Pegava uma daquelas moças e levava ela pro mato e dormia com ela. Era o que eu sempre fazia. Depois eu me arrependia e rezava, mas não adiantava. Depois ela e eu ficávamos cheios do Espírito e acontecia a mesma coisa, outra vez. Pensei que tudo isso era inútil e que eu não passava dum danado dum hipócrita. Mas era sem querer.
Joad sorriu, mostrando os dentes alongados, e também os lábios.
Não tem nada como um bom sermão para a gente se esquentar com as moças. Eu também já fiz isso.
Casy prosseguiu, excitado:
Você vê — gritou. — Eu vi que tudo não passava disso. — Agitou a mão ossuda e nodosa num movimento de vaivém. — Então comecei a pensar: “Estou aqui pregando a graça divina. E tem gente aqui que recebe tanta graça que sai gritando e pulando com fervor. Mas há quem diga que dormir com uma mulher é coisa do diabo. O caso é que quanto mais graça divina uma moça obtém, mais rápido ela quer ir pro mato.” E eu pensava como diabos — me desculpe a expressão — o espírito do mal podia dominar uma moça tão possuída pelo Espírito Santo! Justamente quando o diabo não devia ter oportunidade nenhuma! E era aí que ele mais se manifestava. — Seus olhos brilhavam de excitação e ele deu uma cusparada na poeira e o cuspe rolou, rolou, até formar uma bolinha seca e redonda. Depois estendeu a palma das mãos e ficou olhando-a como se estivesse lendo um livro.
E eis o que eu fiz — prosseguiu com suavidade. — Eis o que eu fiz com todas aquelas almas nas mãos, sentindo a minha responsabilidade, e sempre me deitando com uma das moças. — Olhou Joad com expressão de desânimo. Parecia que iria pedir ajuda.
Joad desenhou na poeira o corpo nu de uma mulher, com seios e quadris.
Pois eu nunca fui um pregador — disse Joad —, mas nunca deixei uma moça escapar quando podia pegar ela. E também nunca andei pensando coisas, a não ser que me sentia danado de satisfeito quando encontrava uma moça pra dormir com ela.
Mas você nunca foi um pregador — insistiu Casy. — Uma moça era apenas uma moça pra você. Não era mais nada. Mas pra mim eram vasos sagrados. Eu estava salvando a alma delas. E, com toda essa responsabilidade, enchia-as do Espírito Santo e depois levava elas pro mato.
Quem sabe eu devia ser um pregador — falou Joad, e tirou fumo e papel e enrolou um cigarro. Acendeu-o, e através da fumaça disse ao pregador: — Estou há um bocado de tempo sem ver mulher. Tenho que arranjar uma.
Ficava tão atormentado que nem conseguia dormir — continuou Casy. — E a cada vez que ia pregar dizia: por Deus, desta vez não vou fazer isso. Mas até enquanto dizia isso, já sabia que não ia cumprir minha promessa.
O senhor devia ter se casado — disse Joad. — Uma vez esteve lá em casa um pregador e a sua mulher. Eram jeovitas. Dormiram no andar de cima. Faziam os sermões no celeiro. Nós, as crianças, escutávamos eles. A mulher do pregador, depois de cada sermão, apanhava que nem um bicho.
Foi bom você me dizer isso. — disse Casy. — Eu pensava que só eu era assim. No final das contas estava tão aflito que só conseguia me culpar. Às vezes eu dizia a mim mesmo: que é que está te corroendo? É um cupim? E logo respondia: não; é o pecado. E eu dizia: por que é que um homem, justamente quando devia estar abrigado contra o pecado e cheio de Jesus, por que é que justamente nessa ocasião um homem assim tem que desabotoar as calças? — Ele ia acompanhando suas palavras com a batida rítmica de dois dedos na palma da mão. — E eu dizia: Talvez não seja o pecado. Talvez a gente seja assim mesmo. Talvez estivesse expulsando de mim o diabo sem razão. E fiquei pensando em como algumas irmãs se flagelavam com um açoite com pontas de arame quase do tamanho de um metro. E também pensei que talvez eu mesmo tenha gostado de me atormentar. Estava pensando nisso tudo deitado debaixo de uma árvore, e acabei adormecendo. A noite chegou, e ainda estava escuro quando acordei. Perto, uivou um coiote. E eu dizia: ora, que vá tudo pro inferno. Não existe pecado, nem virtude. Só existe aquilo que a gente quer fazer. Tudo faz parte da mesma coisa. Algumas coisas que a gente faz são boas e outras não prestam, mas isso está na cabeça de cada um. — Interrompeu-se, erguendo os olhos da palma da mão, em que havia depositado suas palavras.
Joad olhava-o, os dentes arreganhados, mas ao mesmo tempo havia interesse em seus olhos.
O senhor já acabou com isso. Já parou de se torturar — disse.
Casy tornou a falar e sua voz soava confusa e dolorida:
Eu dizia: o que é afinal esse Espírito? E eu respondia: é o amor. Eu gosto tanto dessa gente, gosto a ponto de rebentar. E dizia outra vez: então você não ama Jesus? Bem, eu pensava, tornava a pensar, e dizia: não, eu não conheço ninguém chamado Jesus. Conheço um monte de histórias a respeito dele, mas eu só amo o povo. Às vezes amo o povo a ponto de rebentar, e por isso preguei algumas coisas que eu pensei que o faria feliz. E depois... Bem, acho que estou falando demais. Você deve estar surpreso por ver-me usar palavras tão ruins. São as palavras usadas pelo povo, e nada há de mau nelas. De qualquer forma, vou lhe dizer mais uma coisa que pensei: é a coisa mais ímpia que um pregador pode dizer...
Que é? — inquiriu Joad.
Casy olhou-o acanhado.
Se lhe soar mal, não tome como ofensa, sim?
Nada me ofende, a não ser um murro no nariz — disse Joad. — Que é que você ia dizer?
Eu pensei qual seria o caminho que me levaria ao Espírito Santo e a Jesus. Eu dizia: para que devemos depender sempre de Deus ou de Jesus? Talvez, eu pensei, talvez seja melhor amar todos os homens e as mulheres. Talvez o Espírito Santo seja apenas o espírito humano, e nada mais. Talvez toda a humanidade seja uma só grande alma, de que todos fazem parte. Foi o que eu pensei e de repente sabia, sabia que isto era a verdade, e continuo a pensar do mesmo jeito.
Joad olhou o chão, embaraçado, incapaz de encarar a honestidade nua nos olhos do pregador.
O senhor não pode dirigir uma igreja com essas ideias — falou. — O povo ia expulsar o senhor. O povo quer é berrar e chorar a um Deus, é disso que o povo gosta. Assim, eles se sentem bem. Quando minha avó começava a falar de religião, ninguém conseguia fazer ela parar. Ela era capaz de derrubar uma parede com um soco.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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