De
jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de suas
jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo ― foi em
arraso de um tirotêi, pra cima do lugar Serra-Nova, distrito de
Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena,
e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte
político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do
Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Aguentamos hora mais
hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé
Cazuzo ― homem muito valente ― se ajoelhou giro no chão do
cerrado, levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só
gritava, urro claro e urro surdo! ― Eu vi a Virgem Nossa, no
resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!... Gritava não
esbarrava. ― Eu vi a Virgem!... Ele almou? Nós
desigualamos. Trape por meu cavalo ― que achei ― pulei em mal
assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado
em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. No
mato, o medo da gente se sai ao inteiro, um medo propositado. Eu
podia escoicear, feito burro bruto, dá-que, dá-que. Umas duas ou
três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de
arrancar quase muita a paina do encheio. Cavalo estremece em pró, em
meio de galope, sei! pensa no dono. Eu não cabia de estar mais bem
encolhido. Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas,
com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto,
esquentou minha côxa, sem me ferir, o senhor veja! bala faz o que
quer ― se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos
loucos... Burumbum!! o cavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e
eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas, ramada e
cipós, que me balançaram e espetavam, feito eu estava pendurado em
teião de aranha… Aonde? Atravessei aquilo, vida toda... De medo em
ânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá ―
e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado
de môitas, sempre me agarrava ― rolava mesmo assim! depois ―
depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não era tirado
sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e
masgalhei... Pousei no capim do fundo ― e um bicho escuro deu um
repulão, com um espirro, também dôido de susto! que era um
papa-mel, que eu vislumbrei; para fugir, esse está somente. Maior
sendo eu, me molhou meu cansaço; espichei tudo. E um pedacinho de
pensamento! se aquele bicho irara tinha jazido lá, então ali não
tinha cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me
largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos,
dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem
fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu
guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em
Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-congo cantou. Eu queria
morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na
Serra do Pau-d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade
dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava,
sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta
minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas
divagadas. No senhor me fio? Até-que, até-que. Diga o
anjo-da-guarda... Mas, conforme eu vinha: depois se soube, que mesmo
os soldados do Tenente e os cabras do Coronel Adalvino remitiram de
respeitar o assopro daquele Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o
homem mais pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão,
no São Domingos Branco. Tempos!
Fala
de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães
Rosa
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