segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Jagunço comportado

De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio de suas jagunçagens, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo ― foi em arraso de um tirotêi, pra cima do lugar Serra-Nova, distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois ficou capitão. Aguentamos hora mais hora, e já dávamos quase de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo ― homem muito valente ― se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e urro surdo! ― Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus filhos de Anjos!... Gritava não esbarrava. ― Eu vi a Virgem!... Ele almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo ― que achei ― pulei em mal assento, nem sei em que rompe-tempo desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala vinha. O cerrado estrondava. No mato, o medo da gente se sai ao inteiro, um medo propositado. Eu podia escoicear, feito burro bruto, dá-que, dá-que. Umas duas ou três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina do encheio. Cavalo estremece em pró, em meio de galope, sei! pensa no dono. Eu não cabia de estar mais bem encolhido. Baleado veio também o surrão que eu tinha nas costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha côxa, sem me ferir, o senhor veja! bala faz o que quer ― se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... Burumbum!! o cavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e eu já caindo para diante, abraçado em folhagens grossas, ramada e cipós, que me balançaram e espetavam, feito eu estava pendurado em teião de aranha… Aonde? Atravessei aquilo, vida toda... De medo em ânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá ― e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão fechado de môitas, sempre me agarrava ― rolava mesmo assim! depois ― depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo ― e um bicho escuro deu um repulão, com um espirro, também dôido de susto! que era um papa-mel, que eu vislumbrei; para fugir, esse está somente. Maior sendo eu, me molhou meu cansaço; espichei tudo. E um pedacinho de pensamento! se aquele bicho irara tinha jazido lá, então ali não tinha cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me largar. Eu era só mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-congo cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d’Arco, quase na divisa baiana, com nossa outra metade dos sô-candelários... Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. No senhor me fio? Até-que, até-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas, conforme eu vinha: depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e os cabras do Coronel Adalvino remitiram de respeitar o assopro daquele Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o homem mais pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão, no São Domingos Branco. Tempos!
Fala de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa

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