Há
anos Frida Kahlo me persegue. Tentei fugir, não consegui. Desde os
anos 70, redescoberta pelas feministas, quando fotos dela começaram
a aparecer nas revistas, eu tinha medo. E me recusava a ler. Bastava
aquele rosto duro, de pedra, metade asteca, metade etrusco, buço e
sobrancelhas cerrados, olhar direto, arrogante. Sem saber quase nada,
eu intuía qualquer coisa terrível na história de Frida. Descobri
depois: era ainda mais terrível do que poderia imaginar.
Veio
então um filme mexicano extraordinário, numa exibição especial
qualquer, com certa atriz magnífica (não lembro o título, talvez
Frida, algum cinéfilo me diga por favor). Saí do cinema aos
prantos. E devorei, numa noite, uma biografia escrita por Rauda
Jamis. Aterrorizado, fascinado. Ó Deus, por que a beleza pode ser
tão medonha? Ou ao contrário, por que o medonho pode ser tão belo?
Vieram então os quadros. As cores, as corças feridas com cabeça
humana, corpos esquartejados, colunas vertebrais metálicas, as
pernas amputadas, pregos na carne: a Dor. Maiúscula, maior que tudo.
E sempre o rosto. Em todos os quadros, o rosto
indescritível.
Em
Paris, há três anos, caminhando por uma mostra de arte mexicana no
Beaubourg, de repente tive uma espécie de vertigem. Que, estranho,
não vinha de dentro de mim, mas emanava de um ponto na parede.
Olhei: era uma explosão de cores primárias, brilhantes, exageradas.
Era uma das dezenas de autorretratos de Frida Kahlo. Amarelo,
vermelho, verde, lilás. Tive febre, depois. E comprei um livro de
reproduções, as livrarias de Saint-Germain-des-Prés estavam cheias
deles. E as de Amsterdam, as de Berlim, as de Milão e Londres e Oslo
também, fui descobrindo. A imagem martirizada de Frida Kahlo estava
por toda parte, como um Cristo-mulher contemporâneo. Um Cristo
artista, bissexual, bêbado, drogado, adúltero, arrancando sua
transcendência do próprio sangue, com as próprias unhas. E eu
cruzava a Europa de ponta a ponta ouvindo Adriana Calcanhotto cantar
no walkman: “Eu ando pelo mundo/ Prestando atenção em cores/
Cores que eu não sei o nome/ Cores de Almodóvar, cores de Frida
Kahlo, cores.”
Agora
leio O
diário de Frida Kahlo,
um livro lindíssimo da Livraria José Olympio Editora, publicado no
mundo todo este ano a partir de cadernos deixados no Banco do México.
Os diários, escritos com tinta colorida, entremeados de desenhos
perturbadores, com símbolos esotéricos hindus, celtas,
pré-colombianos, cobrem os anos de 1944-1954. Sempre deitada,
coberta de panos e mantas de seda índios, cheia de joias
extravagantes, ela olhava-se ao espelho e pintava e escrevia sem
parar o que conhecia melhor: a própria dor. A coluna bíf i da,
poliomielite, uma perna esmagada e amputada, várias fraturas na
coluna, 35 cirurgias durante uma vida de apenas 47 anos.
Sobre
aquele rosto, diz Carlos Fuentes, que a viu apenas uma vez no Palácio
das Belas-Artes da Cidade do México: “O corpo é o templo da alma.
O rosto é o templo do corpo. E quando o corpo decai, a alma não tem
outro santuário a não ser o rosto.” E Frida, que era poeta, diz
assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde
que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido
explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo al
otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y
difíciles.”
E diz mais, escute, é importante: “Lo
que más importa es la no-ilusión. La mañana nace.”
Passo
noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de
suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não
consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em
frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que
seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais
maior que a dela. Por isso mesmo, eu a suportarei. Como ela, em sua
homenagem, Frida.
Caio
Fernando Abreu,
in Pequenas
epifanias
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