A
casa vive. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. As largas
paredes de adobe e madeira estão sempre frescas, mesmo quando, em
pleno meio-dia, o sol silencia os pássaros, açoita as árvores,
derrete o asfalto. Deslizo ao longo delas como um ácaro na pele do
hospedeiro. Sinto, se as abraço, um coração a pulsar. Será o meu.
Será o da casa. Pouco importa. Faz-me bem. Transmite-me segurança.
A Velha Esperança traz às vezes um dos netos mais pequenos.
Transporta-os às costas, bem presos com um pano, segundo o uso
secular da terra. Faz assim todo o seu trabalho. Varre o chão, limpa
o pó aos livros, cozinha, lava a roupa, passa-a a ferro. O bebê, a
cabeça colada às suas costas, sente-lhe o coração e o calor,
julga-se de novo no útero da mãe, e dorme. Tenho com a casa uma
relação semelhante. Ao entardecer, já o disse, fico na sala de
visitas, colado às vidraças, vendo morrer o sol. Depois que a noite
cai vagueio pelas diferentes divisões. A sala de visitas comunica
com o jardim, estreito e mal tratado, cujo único encanto são duas
gloriosas palmeiras imperiais, muito altas, muito altivas, que se
erguem uma em cada extremo, vigiando a casa. A sala está ligada à
biblioteca. Passa-se desta para o corredor através de uma porta
larga. O corredor é um túnel fundo, úmido e escuro, que permite o
acesso ao quarto de dormir, à sala de jantar e à cozinha. Esta
parte da casa está voltada para o quintal. A luz da manhã afaga as
paredes, verde, branda, filtrada pela ramagem alta do abacateiro. Ao
fundo do corredor, do lado esquerdo de quem entra, vindo da sala,
ergue-se com esforço uma pequena escada em três lances quebrados.
Subindo-a, chega-se a uma espécie de mansarda, que o albino pouco
frequenta. Está cheia de caixotes com livros. Eu também não vou lá
muitas vezes. Morcegos dormem nas paredes, de cabeça para baixo,
embrulhados nas suas capas negras. Ignoro se as osgas fazem parte da
dieta dos morcegos. Prefiro continuar sem saber. O mesmo motivo – o
terror! – impede-me de explorar o quintal. Vejo, das janelas da
cozinha, da sala de jantar ou do quarto de Félix, o capim crescer
bravio por entre os roseirais. Um imenso abacateiro levanta-se,
frondoso, precisamente ao centro do quintal. Há ainda duas
nespereiras, altas, carregadas de nêsperas, e uma boa dezena de
papaieiras. Félix acredita no poder regenerador das papaias. Um muro
alto fecha o jardim. O topo do muro está coberto por cacos de vidro,
em cores variadas, presos com cimento. Daqui de onde os vejo
lembram-me dentes. Este feroz artifício não impede que, vez por
outra, meninos saltem o muro e roubem abacates, nêsperas e papaias.
Colocam uma tábua sobre o muro e depois alçam o corpo. Parece-me
uma tarefa demasiado arriscada para tão escasso proveito. Talvez não
o façam para provar as frutas. Creio que o fazem para provar o
risco. Amanhã o risco há-de, talvez, saber-lhes a nêsperas
maduras. Imaginemos que um deles venha a tornar-se sapador. Neste
país não falta trabalho aos sapadores. Ainda ontem vi, na
televisão, uma reportagem sobre o processo de desminagem.
Um
dirigente de uma organização não governamental lamentou a
incerteza dos números. Ninguém sabe, ao certo, quantas minas foram
enterradas no chão de Angola. Entre dez a vinte milhões.
Provavelmente haverá mais minas do que angolanos. Suponhamos, pois,
que um desses meninos venha a tornar-se sapador. Sempre que rastejar
através de um campo de minas há-de vir-lhe à boca o remoto sabor
de uma nêspera. Um dia enfrentará a inevitável questão, lançada,
com um misto de curiosidade e horror, por um jornalista estrangeiro:
– Em
que pensa enquanto desarma uma mina?
E
o menino que ainda houver nele responderá sorrindo:
– Em
nêsperas, meu pai.
A
Velha Esperança, essa, acha que são os muros que fazem os ladrões.
Ouvi-a dizer isto a Félix. O albino encarou-a, divertido:
–
Querem
lá ver que tenho uma anarquista em casa?! Daqui a pouco descubro que
anda a ler Bakunine.
Disse
isto e não lhe prestou mais atenção. Ela nunca leu Bakunine,
claro; aliás, nunca leu livro nenhum, mal sabe ler. Todavia, venho
aprendendo muita coisa sobre a vida, no geral, ou sobre a vida neste
país, que é a vida em estado de embriaguez, ouvindo-a falar
sozinha, ora num murmúrio doce, como quem canta, ora em voz alta,
como quem ralha, enquanto arruma a casa. A Velha Esperança está
convencida de que não morrerá nunca. Em mil novecentos e noventa e
dois sobreviveu a um massacre. Tinha ido a casa de um dirigente da
oposição buscar uma carta do filho mais novo, em serviço no
Huambo, quando irrompeu (vindo de toda a parte) um forte tiroteio.
Insistiu em sair dali, queria regressar ao seu musseque, mas não a
deixaram.
– É
loucura, velha, faça de conta que está a chover.
Daqui
a pouco passa. Não passou. O tiroteio, como um temporal, foi ficando
mais forte, mais cerrado, foi crescendo na direcção da casa. Félix
contou-me o que aconteceu naquela tarde:
“Veio
uma tropa fandanga, uma malta de arruaceiros bem armados, muito
bebidos, entraram pela casa à força e espancaram toda a gente. O
comandante quis saber como se chamava a velha. Ela disse-lhe,
Esperança Job
Sapalalo, patrão, e ele riu-se.
Troçou, a Esperança
é a última a morrer.
Alinharam o dirigente e a família no quintal da casa e
fuzilaram-nos. Quando chegou a vez da Velha Esperança não havia
mais balas. O que te
salvou, gritou-lhe
o comandante, foi a
logística. O
nosso problema há-de ser sempre a logística.
Depois mandou-a embora. Agora ela julga-se imune à morte. Talvez
seja.”
Não
me parece impossível. Esperança Job Sapalalo tem uma fina teia de
rugas no rosto, o cabelo todo branco, mas as carnes mantêm-se rijas,
e os gestos são firmes e precisos. Na minha opinião é a coluna que
sustenta esta casa.
José
Eduardo Agualusa,
in O vendedor de
passados
Nenhum comentário:
Postar um comentário