Nascemos
equipados para nos acostumarmos com todo tipo de porcaria. E, com o
tempo e uma boa dose de acomodação, nos arriscamos a acreditar que
a porcaria toda faz parte da vida. Compramos desculpas prontas para
nós mesmos do tipo "não era pra ser", "o que vem
fácil vai fácil",
"o que é bom dura pouco"; e ficamos repetindo essa espécie
de baboseira como um mantra de autossabotagem. Talvez tenha chegado a
hora de arrancar o tubinho da veia, aguentar um pouco a dor de viver
sem anestesia e descobrir a que viemos.
Com
um pouquinho de esforço, conseguimos nos lembrar das nossas mais
antigas lições de alienação. São lembranças meio desfocadas, de
cores borradas, mas que, se observadas agora, pelos protagonistas de
seus limitantes ensinamentos, podem servir como valiosos instrumentos
de cura para nossas crenças irrefletidas acerca de nossa pouca
capacidade de domínio sobre nossas próprias escolhas. Alguns de nós
pode ter tido sua cabecinha acariciada demais, inclusive quando
deveriam ter sido chamados à responsabilidade por terem feito rolar
cabeças alheias. Esses são uma espécie de buracos negros afetivos;
sugam tudo ao seu redor, não têm escrúpulos para satisfazer seus
desejos; enxergam nos outros, meros degraus para sua ascensão.
Outros de nós, tiveram sua vontade subreticiamente negada; cresceu
acreditando que é preciso curvar-se sempre; que é errado
sobressair-se; que nunca dará conta. Esses são vítimas eternas do
destino; assumem a culpa até do que desconhecem; acreditam que
haverá no final um altar em homenagem à sua martirizada existência.
E há, uma pequena e seleta parcela de nós que tornou-se humana pela
observância da justiça e do equilíbrio; teve a oportunidade de
acertar, mas também recebeu a permissão para errar; sabe que
nenhuma conquista é legítima se fizer o outro sofrer. Esses são os
que saberão suportar, compreender e organizar as relações no
mundo; acreditam que são capazes, mas sabem que não são os únicos;
enxergam as infinitas possibilidades de fazer a vida valer a pena. A
pergunta que cabe agora é QUE TIPO DE GENTE EU QUERO SER, AFINAL?
É
claro que há padrões a nortearem nossas etapas de desenvolvimento.
Há um tempo mais ou menos uniforme para marcar nossas primeiras
conquistas corporais de ambientação e convívio com o espaço ao
redor; rastejamos, engatinhamos, cambaleamos incertos, caminhamos e
aprendemos que a caminhada pode ganhar velocidade. Colocamos toda
sorte de coisas estranhas na boca, mexemos em tudo, nossa curiosidade
é ilimitada, nossa inteligência depende dessa inquietação pelo
novo para se desenvolver. Tropeçamos, caímos, levantamos. Tornamos
a cair inúmeras vezes; alguns de nós leva tombos tão sérios que
jamais voltam a se levantar. Outros de nós, nasce com limitações
orgânicas e dependerão de alguém para sempre, mesmo para dar conta
das mínimas necessidades de sobrevivência.
Curiosamente,
não é exatamente essa limitação física ou cognitiva que vai nos
definir como mais ou menos capacitados a distinguir porcarias
inofensivas de porcarias peçonhentas. Há muitos de nós que a
despeito de ter partes do corpo que não funcionam, ou terem seus
jeitos especiais de aprender, parecem ter em sua essência algo de
extraordinariamente singular. Essa gente não aceita passivamente as
negativas, quer sejam da vida ou de seus insensíveis semelhantes.
São exemplos de fé inquebrável em sua própria capacidade de
vencer o impossível.
Entretanto,
a maioria de nós, donos de equipamentos físicos e cognitivos de
primeira linha, tem a ousadia de se fingir de morto diante da mais
singela provocação da vida. Basta ouvir um "não", ainda
que o "não" seja a única resposta possível naquele
momento, para acreditarem que são desafortunados, desvalorizados e
incompreendidos. Oh! Quanta injustiça! Essa gente se dobra com uma
vergonhosa facilidade, acha sempre uma excelente desculpa para
desistir e vive esperando uma estrela da sorte que vá dar uma
guinada em sua vida. São exemplos de falta de consistência e
conteúdo. Gente que desmorona sob o mais inocente ventinho; e
arrasta consigo quem estiver disponível pra servir de escora.
O
que é que nos move? Qual é a nossa parcela de responsabilidade
nesse caos em que vivemos, fazendo de conta que está tudo sob
controle? Até quando vamos seguir esperneando e resmungando contra
os desmandos e erros alheios, sem entender que a mudança que tanto
reclamamos pra nós só está estacionada ou em câmera lenta porque
temos preguiça de tomar uma atitude? Quem sabe já não esteja na
hora de abrirmos mão da sedação voluntária a que nos submetemos
todos os dias... Quem sabe já não seja tempo de entender que grande
parte das nossas ridículas aquisições materiais não passam de
anestesia para aguentar uma vida sem verdadeiros propósitos? Tiremos
a anestesia, esperemos um pouco para ver o que é que sobra.
Aguentemos um pouco a dor, até para podermos perceber se é dor
mesmo ou apenas um infantil apego ao sofrimento. O risco?
Encontrarmos por debaixo de nossa casca anestesiada uma pessoa
inteira e de verdade.
Ana
Macarini, in lounge.obviousmag.org (Pelo Avesso)
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