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Vender
um carro não é tão difícil assim. O problema é que agora
inventaram que a gente tem de ir ao cartório. Assinar lá aquele
papelzinho e o sujeito reconhecer a firma da gente. Não adianta
mandar ninguém. Tem de ser a gente.
Pois
é. Vendi o meu carro e lá fui eu, na quarta passada, reconhecer a
minha firma, palavra pomposa para a nossa humilde assinatura. Assinei
na cara do sujeito e entreguei. Me pediu a carteira de identidade.
Meu Deus, esqueci. Tento quebrar o galho.
— Sem
a carteira de identidade não tem possibilidade.
— Meu
amigo, está chovendo, foi uma luta estacionar o carro e…
—
Impossível. O senhor não viu escrito
ali?
Foi
quando eu me lembrei do Estadão que estava debaixo do braço. Minha
coluna, minha foto. Mostro para ele.
— Está
vendo? Sou eu.
Olhou
para a foto, olhou para mim.
—
Reconheceu?
— É,
reconheci. Mas, para reconhecer a firma, só com a identidade. É
lei, olha a fila, meu senhor.
— Meu
amigo, a carteira de identidade é para provar que eu sou eu, não é?
Pois eu acabo de provar que eu sou eu. Ou não?
— Eu
sei que o senhor é o senhor, mas não adianta. Olha a fila.
— Posso
falar com o seu chefe?
— Não
vai adiantar. É aquele. O de peruca. Seu Wilson.
Caminho
na direção do seu Wilson. De longe, já começo a analisar a peruca
dele. Peruca de homem, não sei por que, sempre me fascina. Me dá
uma vontade quase incontrolável de arrancar, de fazer com que todo
mundo em volta ria.
Vou
olhando em volta. O cartório evoluiu muito. Agora está cheio de
computadores. Tá “muderno”. Numa mesa a Dulce, a Dudu e o
Ferreira (gripadíssimo) dominam o computador para, logo em seguida,
bater o carimbo. O carimbo! Céus, quando é que o burocrata vai
livrar-se do carimbo? Fico olhando o trabalho da Dulce enquanto o da
peruca atende uma senhora de laquê, muito nervosa. Conto: a Dulce
bateu 93 vezes o carimbo em um minuto. Isso é que é funcionária!
Mais ou menos uma e meia carimbada por segundo. Está noiva, a Dulce.
Seu
Wilson era inteirinho cinza. Ia do cinza claro do terno até o cinza
escuro da olheira. Seu Wilson estava conversando com a de laquê, me
olhando de lado. Chega a minha vez. Ele:
—
Conheço o senhor de algum lugar. O
senhor já não foi no programa do Jô?
— Meu
nome é Mário Prata e…
—
Claro, do Estadão. Reconheci o senhor
assim que vi o senhor entrando. Qual é o problema, Marinho?
Odeio
que me chamem de Marinho. Mas como havia sido reconhecido, tudo bem.
— É
o seguinte, seu Wilson. Vim reconhecer a assinatura da venda do carro
e não trouxe a carteira de identidade e…
— lh…
— Mas
como o senhor me reconheceu, pode reconhecer também a minha
assinatura.
— É,
mas só que, pra reconhecer a assinatura, eu preciso da sua carteira
de identidade. É uma questão legal.
—
Legal, né?
Sentei.
— Seu
Wilson, acompanhe o meu raciocínio.
— Pois
não.
— O
senhor precisa da minha carteira de identidade para ter certeza de
que eu sou eu, não é isso?
—
Exatamente, Marinho.
—
Mário, por favor. Mário Alberto Campos
de Morais Prata. Então, continuando, se o senhor sabe que eu sou eu,
acho que a gente podia deixar a carteira de identidade pra lá.
— Veja,
Mário Alberto (piorou!), quando o decreto saiu no Diário Oficial…
— Tudo
bem, tudo bem. Mas me diga, seu Wilson: quem sou eu (aliás uma
pergunta que me tenho feito muito: quem sou eu)?
— O
senhor é o Mário Prata.
— O
senhor reconhece isso?
— O
senhor está querendo me pegar, não é? Olha, Campos, agora não
posso mais. O meu funcionário, entende? Eu não posso passar por
cima dele, tirar a autoridade dele. Se o senhor tivesse me procurado
antes, aí sim, talvez…
Fiquei
me segurando para não arrancar a peruca dele e colocar fogo. Estava
com o isqueiro aceso. Acendi o cigarro, pensei no meu avô Mario que
tinha cartório em Uberaba. Pensei em Jesus pensando nos pobres de
espírito, pensei no Brasil, pensei na mãe do seu Wilson, pensei que
eu não era mais eu.
Liguei
para a Isabela, que ia comprar o meu carro.
—
Isabela, desisti. Descobri que eu não
existo, Isabela.
E
fui para o divã do dr. Leonardo Ramos, que tem de carimbar a receita
para que eu possa comprar Lexotan.
Mário
Prata,
in Jornal
O Estado de São Paulo, 03/06/1998
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