“Essa
noite eu tive um sonho. Grande bobagem, nada disso. Não era assim
que eu queria começar, não é assim. Essa noite eu tive um sonho —
parece diário de colégio de freiras, não é nada disso. Mas, de
fato, eu tive um sonho. Um sonho inesperado, com aqueles dois
budazinhos ali. Antigamente eu sonhava muito com eles, mas parei faz
décadas, tudo faz décadas. São muito pequenininhos, os detalhes se
perdem, comprei num camelô de Banguecoque, é um objeto sentimental.
Não lembro onde li a respeito de dois Budinhas, um macho e uma fêmea
fazendo sexo, essas coisas milenares de chinês, nunca entendo
direito, misturo as da tas, apronto a maior confusão. Havia uma
espécie de templo, a Casa dos Budas Ditosos — não é bonitinho, a
casa dos Budas ditosos? eu acho —, com imagens iguais a essas, só
que enormes. Os noivos, antes do casamento, iam lá para venerar as
estátuas e passar as mãos nos órgãos genitais delas. Era uma
espécie de aprendizado ou familiarização, uma introdução a um
casamento bom na cama. Eu acho de um bom gosto delicadíssimo. Em
Roma antiga, houve um tempo em que as noivas acariciavam a glande de
Príapo, ou se sentavam nela. Pelo que eu li, a glande mais usada, a
glande pública, por assim dizer, devia ser uma verdadeira poltrona.
Príapo foi substituído por São Gonçalo, no nosso politeísmo
católico. Os católicos são politeístas. Desculpe, se você é
católico. Aliás, naturalmente que eu também fui criada como
católica, tinha aulas de catecismo, fiz primeira comunhão vestida
de organdi branco, só falava o estritamente necessário na
sexta-feira santa, só comíamos peixe toda quinta-feira e assim por
diante. Mais ainda, fui criada para considerar os protestantes
gentinha e ficava com raiva de Lutero, que me parecia a feição do
demônio, nos livros de História Geral. Levei um certo tempo para me
livrar dessa estupidez, veja você; hoje, tenho até bastante
afinidade com os protestantes, exceto os calvinistas e, óbvio, esse
pentecostalismo histérico e de baixa extração, que ora nos assola.
O magistério da Igreja me enerva. Prefiro eu mesma ler a Bíblia e
pensar do que leio o que me parece certo pensar, quero eu mesma me
inteirar das boas novas, sem nenhum padre de voz de tenorino gripado
me ensinando incoerências, subestimando minha inteligência e
repetindo baboseiras inventadas, semelhantes à desfaçatez de
afirmar que no Pentateuco há mandamentos como guardar castidade, que
os homens santos não batizados foram para um tal de limbo e tantas
outras criações conciliares, já li a Bíblia de cabo a rabo e
nunca vi nada disso nela. E por que também não observam o que
também está lá, no Levítico? Fingem que não está. E o Papa é
vigário de Cristo? Certos papas, todo mundo sabe o que foram certos
papas, todos infalíveis e tantos safados? Enfim. Não vou falar mais
nisso, perda de tempo.
Além
de tudo, não há nada demais em ser politeísta, de certa forma é
muito melhor do que ficar acreditando somente num Deus impossível de
compreender. E, ainda além de tudo, já estou cansada de não dizer
o que me vem à cabeça e olhe que nunca fui muito de agir assim, mas
o pequeno grau em que fui já é demais para mim. Ainda me restam
alguns penduricalhos desse legado imbecilóide, de que tenho de me
livrar antes de morrer. A doença, esta doença que vai me matar,
também contribui para meu atual estado de espírito. Não sei quem
foi que disse que a perspectiva de ser enforcado amanhã de manhã
opera maravilhas para a concentração. Excelente constatação. Nada
de pessoal com ninguém, não falo para ofender ninguém em
particular, é como se fosse uma atitude filosófica genérica. Meu
avô materno era aristocrata, elegantíssimo, falava francês e
alemão fluentemente, esteve várias vezes na Europa, era cultíssimo,
mas, depois que passou de uma certa idade, peidava em público.
Assisti ele peidar na frente do interventor, na época do Estado
Novo. O interventor tinha ido almoçar com ele e, depois do almoço,
ficaram conversando na sala de estar, com meu avô volta e meia
levantando os quartos e soltando vento aos trovões. Quando minha avó
reclamava, ele dizia que o que está preso quer ser solto e todo
mundo peidava, inclusive o interventor, então não era ele que,
àquela altura da vida, ia arrolhar um peido. Quem quisesse que
arrolhasse, mas ele não.
Mas,
sim, mas então eu estava dizendo que os católicos são politeístas,
botaram os santos no lugar dos deuses especializados. Os gregos e os
romanos tinham um deus menor para cada coisa, regras atrasadas,
artistas falidos, transações impossíveis, dívidas falimentares,
casamentos, músicos bêbedos, agricultores, criadores de cabra,
tudo, tudo, tudo. Os católicos substituíram os deuses pelos santos.
Os músicos? Santa Cecília. Os ruins da vista? Santa Luzia. As
solteironas? Santo Antônio. E por aí vai, como você sabe. Até
lugares. São José de Não Sei Onde? Diana de Éfeso, a mesmíssima
coisa. Os deuses não foram derrotados ou eliminados, continuam
imortais como sempre foram e somente mudaram de nome, se adaptaram às
mudanças. Eu pronuncio verdadeiras conferências sobre isso, sou a
rainha da conferência, às vezes devo ficar chatíssima. Mas pode
permanecer tranquilo, que eu não vou fazer conferência para você,
afinal você está sendo pago, temos que trabalhar, vamos trabalhar.
Somente uma última referenciazinha a São Gonçalo, porque agora já
comecei e sou compulsiva; comecei, tem que acabar. São Gonçalo não
existe. Ou melhor, existe, mas nunca existiu. Para a Igreja, não há
nenhum São Gonçalo, nunca houve. Mas se declarou, na minha opinião
por falta de Príapo, uma grande lacuna, que clamava por ser
preenchida. Não existe São Gonçalo, mas já vi procissão dele com
padre e tudo, e as mulheres cantando obscenidades baixinho, é um
santo deflorador e consolador para as solitárias. No arraial junto à
fazenda da ilha, segundo até meu avô contava, havia uma imagem de
São Gonçalo com um falo de madeira descomunal, maior que o próprio
corpo dele. O corpo era de barro, mas o falo era de madeira de lei e
fixado pela base num eixo, de maneira que, quando se puxava uma
cordinha por trás, ele subia e ficava ali em riste. Eu nunca vi, mas
as negras velhas da fazenda garantiam que antigamente, todo ano,
faziam uma procissão com essa imagem de São Gonçalo e as mulheres
disputavam quem ia repintar o falo, era sucesso garantido no mundo
das artes, para não falar que a felizarda ficaria muito bem
assistida nos seguintes 364 dias.”
João
Ubaldo Ribeiro,
in A
casa dos budas ditosos
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