segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um jeito de sarar com Deus


A gente - essas tristezas. Mesmo, daí, Vovó Izidra relhava, aconselhava pra ele não ir caminhar molhando os pés no chão chovido. Que era que adiantava? Para um assim, com má-sina - que é que adiantava? Entre chuva e outra, o arco-da-velha aparecia bonito, bebedor; quem atravessasse debaixo dele - fú! - menino virava menina, menina virava menino; será que depois desvirava? Estiadas, as aguinhas brincavam nas árvores e no chão, cada um de um jeito os passarinhos desciam para beber nos lagoeiros. O sanhaço, que oleava suas penas com o biquinho, antes de se debruçar. O sabiá-peito-vermelho, que pinoteava com tantos requebros, para trás e para a frente, ali ele mesmo não sabia o que temia. E o casal de tico-ticos, o viajadinho repulado que ele vai, nas léguas em três palmos de chão. E o gaturamo, que era de todos o mais menorzim, e que escolhia o espaço de água mais clara.: a figurinha dele, reproduzida no argume, como que ele muito namorava. Tudo tão caprichado lindo!
Ele Miguilim havia de achar um jeito de sarar com Deus. Perguntava a Mãitina, mesmo, como não devia, quem sabe?
Mãitina gostava dele, por certo, tinha gostado, muito, uma vez, fazia tempo, tempo. Migulim agora tirava isso, da deslembra, como as memórias se desentendem. Ocasião, Mãitina sempre ficava cozinhando coisas, tantas horas, no tacho grande, aquele tacho preto, assentado na trempe de pedras soltas, lá no cômodo pegado com a casa, o puxado, onde que era a moradia dela - uma rebaixa, em que depois tinham levantado paredes: o acrescente, como se chamava. Lá era sem luz, mesmo de dia quase que só as labaredas alumiavam. Miguilim era mais pequeno, tinha medo de tudo, chegou lá sozinho pra espiar, não tinha outra pessôa ninguém lá, só Mãitina mesmo, sentada no chão, todo mundo dizia ela feiticeira, assim preta encoberta, como que deve ser a Morte. Miguilim esbarrou, já estava com um começo de dúvida, daí viu, os olhos dele vendo: viu nada, só conheceu que o escuro estava sendo mais maldoso, em redor - e o treslinguar do fogo - era uma mata-escura, mato em que o verde vira preto, e o fogo pelejava pra não deixar aquilo tomar conta do mundo, estremeciam mole todos os sombreados. Ele se assustou forte, deu grito. E, se agarrando nas costas dela, se abraçou com Mãitina. Ah, se lembrava. Pois porque tudo tinha tornado a se desvirar do avesso, de repente, Mãitina estava pondo ele no colo, macio manso, e fazendo carinhos, falando carinhos, ele nem esperava por isso, isso nem antes nem depois nunca não tinha acontecido. O que Mãitina falava, era no atrapalho da linguagem dela, mas tudo de ninar, de querer-bem, Miguilim pegava um sussú de consolo, fechou os olhos pra não facear com os dela, mas, quisesse, podia adormecer inteiro. Não tinha mais medo nenhum, ela falava a zúo, a zumbo, a linguagem dela era até bonita, ele entendia que era só de algum amor. Tanto mesmo Mãitina tinha gostado dele, nesse dia, que, depois, ela segurou na mãozinha dele, e vieram, até na porta-da-cozinha, aí ela gritou, exclamando os da casa, e garrou a esbravecer, danisca, xingando todos, um cada um, e apontava pra ele, Miguilim, dizendo que ele só que era bonzinho, mas que todos, que ela mais xingava, todos não prestavam. Pensaram que ela tivesse doidado furiosa.”
João Guimarães Rosa, in Manuelzão e Miguilim

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