“A
gente - essas tristezas. Mesmo, daí, Vovó Izidra relhava,
aconselhava pra ele não ir caminhar molhando os pés no chão
chovido. Que era que adiantava? Para um assim, com má-sina - que é
que adiantava? Entre chuva e outra, o arco-da-velha aparecia bonito,
bebedor; quem atravessasse debaixo dele - fú! - menino virava
menina, menina virava menino; será que depois desvirava? Estiadas,
as aguinhas
brincavam nas árvores e no chão, cada um de um jeito os passarinhos
desciam para beber nos lagoeiros. O sanhaço, que oleava suas penas
com o biquinho, antes de se debruçar. O sabiá-peito-vermelho, que
pinoteava com tantos requebros, para trás e para a frente, ali ele
mesmo não sabia o que temia. E o casal de tico-ticos, o viajadinho
repulado que ele vai, nas léguas em três palmos de chão. E o
gaturamo, que era de todos o mais menorzim, e que escolhia o espaço
de água mais clara.: a figurinha dele, reproduzida no argume, como
que ele muito namorava. Tudo tão caprichado lindo!
Ele
Miguilim havia de achar um jeito de sarar com Deus. Perguntava a
Mãitina, mesmo, como não devia, quem sabe?
Mãitina
gostava dele, por certo, tinha gostado, muito, uma vez, fazia tempo,
tempo. Migulim agora tirava isso, da deslembra, como as memórias se
desentendem. Ocasião, Mãitina sempre ficava cozinhando coisas,
tantas horas, no tacho grande, aquele tacho preto, assentado na
trempe de pedras soltas, lá no cômodo pegado com a casa, o puxado,
onde que era a moradia dela - uma rebaixa, em que depois tinham
levantado paredes: o acrescente,
como se chamava. Lá era sem luz, mesmo de dia quase que só as
labaredas alumiavam. Miguilim era mais pequeno, tinha medo de tudo,
chegou lá sozinho pra espiar, não tinha outra pessôa ninguém lá,
só Mãitina mesmo, sentada no chão, todo mundo dizia ela
feiticeira, assim preta encoberta, como que deve ser a Morte.
Miguilim esbarrou, já estava com um começo de dúvida, daí viu, os
olhos dele vendo: viu nada, só conheceu que o escuro estava sendo
mais maldoso, em redor - e o treslinguar do fogo - era uma
mata-escura, mato em que o verde vira preto, e o fogo pelejava pra
não deixar aquilo tomar conta do mundo, estremeciam mole todos os
sombreados. Ele se assustou forte, deu grito. E, se agarrando nas
costas dela, se abraçou com Mãitina. Ah, se lembrava. Pois porque
tudo tinha tornado a se desvirar do avesso, de repente, Mãitina
estava pondo ele no colo, macio manso, e fazendo carinhos, falando
carinhos, ele nem esperava por isso, isso nem antes nem depois nunca
não tinha acontecido. O que Mãitina falava, era no atrapalho da
linguagem dela, mas tudo de ninar, de querer-bem, Miguilim pegava um
sussú de consolo, fechou os olhos pra não facear com os dela, mas,
quisesse, podia adormecer inteiro. Não tinha mais medo nenhum, ela
falava a zúo, a zumbo, a linguagem dela era até bonita, ele
entendia que era só de algum amor. Tanto mesmo Mãitina tinha
gostado dele, nesse dia, que, depois, ela segurou na mãozinha dele,
e vieram, até na porta-da-cozinha, aí ela gritou, exclamando os da
casa, e garrou a esbravecer, danisca, xingando todos, um cada um, e
apontava pra ele, Miguilim, dizendo que ele só que era bonzinho, mas
que todos, que ela mais xingava, todos não prestavam. Pensaram que
ela tivesse doidado furiosa.”
João
Guimarães Rosa,
in
Manuelzão
e Miguilim
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