Primeiro
vamos lá embaixo no córrego; pegamos dois pequenos carás dourados.
E como faz calor, veja, os lagostins saem da toca. Quer ir de
batelão, na ilha, comer ingá? Ou vamos ficar bestando nessa areia
onde o sol dourado atravessa a água rasa? Não catemos pedrinhas
redondas para a atiradeira, porque é urgente subir no morro; os
sanhaços estão bicando os cajus maduros. É janeiro, grande mês de
janeiro!
Podemos
cortar folhas de pita, ir para o outro lado do morro e descer
escorregando no capim até a beira do açude. Com dois paus de pita,
faremos uma balsa, e, como o carnaval é no mês que vem, vamos
apanhar tabatinga para fazer fôrmas de máscaras. Ou então vamos
jogar bola-preta: do outro lado do jardim tem pé de saboneteira. Se
quiser, vamos. Converta-se, bela mulher estranha, numa simples menina
de pernas magras e vamos passear nessa infância de uma terra longe.
É verdade que jamais comeu angu de fundo de panela?
Bem
pouca coisa eu sei: mas tudo que sei lhe ensino. Estaremos debaixo da
goiabeira; eu cortarei uma forquilha com o canivete. Mas não consigo
imaginá-la assim; talvez se na praia ainda houver pitangueiras...
Havia pitangueiras na praia? Tenho uma ideia vaga de pitangueiras
junto à praia. Iremos catar conchas cor-de-rosa e búzios crespos,
ou armar o alçapão junto do brejo para pegar papa-capim. Quer?
Agora devem ser três horas da tarde, as galinhas lá fora estão
cacarejando de sono, você gosta de fruta-pão amassada com manteiga?
Eu lhe dou aipim ainda quente com melado. Talvez você fosse como
aquela menina rica, de fora, que achou horroroso o nosso pobre doce
de abóbora e coco.
Mas
eu a levarei para a beira do ribeirão, na sombra fria do bambual;
ali pescarei piaus. Há rolinhas. Ou então ir descendo o rio numa
canoa bem devagar e de repete dar um galope na correnteza, passando
rente às pedras, como se a canoa fosse um cavalo solto. Ou nadar mar
afora até não poder mais e depois virar e ficar olhando as nuvens
brancas. Bem pouca coisa eu sei; os outros meninos riram de mim
porque cortei uma iba de assa-peixe. Lembro-me que vi o ladrão
morrer afogado com os soldados de canoa dando tiros, e havia uma
mulher do outro lado do rio gritando.
Mas
como eu poderia, mulher estranha, convertê-la em menina para subir
comigo pela capoeira? Uma vez vi uma urutu junto de um tronco
queimado; e me lembro de muitas meninas. Tinha que era para mim uma
adoração. Ah, paixão de infância, paixão que não amarga. Assim
eu queria gostar de você, mulher estranha que ora venho conhecer,
homem maduro. Homem maduro, ido e vivido; mas quando a olhei, você
estava distraída, meus olhos eram outra vez os encantados olhos
daquele menino feio do segundo ano primário que quase não tinha
coragem de olhar a menina um pouco mais alta da ponta direita do
banco.
Adoração
de infância. Ao menos você conhece um passarinho chamado saíra? É
um passarinho miúdo: imagine uma saíra grande que de súbito
aparecesse a um menino que só tivesse visto coleiros e curiós, ou
pobres cambaxirras. Imagine um arco-íris visto na mais remota
infância, sobre os morros e o rio. O menino da roça que pela
primeira vez vê as algas do mar se balançando sob a onda clara,
junto a pedra.
Ardente
da mais pura paixão de beleza é a adoração de infância. Na minha
adolescência você seria uma tortura. Quero levá-la para a
meninice. Bem pouca coisa eu sei; uma vez na fazenda riram: ele não
sabe nem passar um barbicacho! Mas o que eu sei lhe ensino; são
pequenas coisas de mato e de água, são humildes coisas, e você é
tão bela e estranha! Inutilmente tento convertê-la em menina de
pernas magras, o joelho ralado, um pouco de lama seca do brejo no
meio dos dedos dos pés.
Linda
como a areia que a onda ondeou. Saíra grande! Na adolescência me
torturaria; mas sou um homem maduro. Ainda assim às vezes é como um
bando de sanhaços bicando cajus de meu cajueiro, um cardume de
peixes dourados avançando, saltando ao sol, na piracema; um bambual
com sombra fria, onde ouvi silvo de cobra e eu quisera tanto dormir.
Tanto dormir! Preciso de um sossego na beira do rio, com remanso, com
cigarras. Mas você é como se houvesse demasiadas cigarras cantando
numa pobre tarde de homem.
Rubem
Braga, in 200 crônicas escolhidas
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