A
madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão
velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho
de cavalo; depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou
a luz de uma lamparina.
Aquele
rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara galopando
na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era
muito rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A
princípio a olhei com espanto, quase desgosto: ela usava calças
compridas, fazia caçadas, dava tiros, saía de barco com os
pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos todos na casa
de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos
nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do Sertão
e uma canção antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo
encanta deve ser alguma santa”. Era uma canção triste.
Cantando,
ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a adorasse com
essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da
adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos
mais do que eu. E amaria o rapaz de suéter e sapado de basquete, que
costuma ir ao Rio, ou (murmurava-se) o homem casado, que já tinha
ido até à Europa e tinha um automóvel e uma coleção de
espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre flaubert, não a
mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar
nem com motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.
Duas
semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária;
eu viajava a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu
coração bateu adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a
cavalo, ao longo da praia, na manhã fria. Pensei que ela fosse
passar me dando apenas um adeus, esse “bom-dia” que no interior a
gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela
respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca.
São as duas imagens que se gravaram na minha memória, desse
encontro: a pela escura e suada do cavalo e a seda branca da blusa;
aquela dupla respiração animal no ar fino da manhã.
E
saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu
fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda,
com calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas
sobre peixes; fiquei com vergonha de não saber quase nada, não
sabia os nomes dos peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros
lugares mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a
gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou
da minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu
nadara desde a ponta do Boi até perto da lagoa.
De
repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me
trata sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a
voz rouca: “Eu não”.
Ela
então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu
disse: “Não é isso”. Montou o cavalo, perguntou se eu não
queria ir na garupa. Inventei que precisava passar na casa dos
Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus muito alegre; no dia seguinte,
foi-se embora.
Agora
eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns
camarões vivos para isca; e o relincho diante de um cavalo me fez
lembrar a moça bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! –
e fui remando com força, sem ligar para os respingos de água fria,
cada vez com mais força, como se isto adiantasse alguma coisa.
Rubem
Braga,
in
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