– Eu
estudei. Não preciso limpar meu banheiro.
Demorei
um tanto para encontrar a relação de causa e efeito e o que meu
interlocutor quis dizer. E, quando entendi, preferi que não tivesse.
Ignorância é benção.
Diante
da minha resposta – de que meus anos de estudo não me davam
salvo-conduto para ficar longe do Veja Multiuso e do glorioso Pinho
Sol (considerado
arma de destruição em massa no Rio de Janeiro),
ele riu: “Você faz isso porque é otário''.
Muitos
de nós somos mal acostumados por ter sempre alguém fazendo aquilo
que não queremos fazer. Digo “queremos'' ao invés de “podemos'',
porque, claro, há exceções de necessidade real. No que pese cada
um enxergar seus problemas como uma novela mexicana, daquelas bem mal
dubladas, quando essa questão é trazida à tona.
Em
parte por conta de um passado mal resolvido, que vincula determinadas
atividades a certas classes sociais e níveis educacionais formais.
Afinal, uns nascem para governar, outros para limpar cocô.
– Ah,
mas é você quem está dizendo que não é digno. É um trabalho
como qualquer outro.
–
Então,
pague melhor. Ou faça você.
– Seu
comunista!
Em
outros lugares do mundo, é mais comum à classe média escolarizada
limpar a sua própria sujeira – ou pagar bem por isso. E não estou
falando da Coreia do Norte ou Cuba, mas sim dos Estados Unidos e da
Europa.
Com
direitos mínimos garantidos ao trabalho doméstico e outros futuros
possíveis para os jovens mais pobres que entram no mercado de
trabalho, a economia faz seu serviço: hora/trabalho mais cara
significa acesso mais difícil pela classe média, que é obrigada a
se virar nos 30 – e, em alguns casos onde há consciência de
classe, pressionar patrões para a redução de sua própria jornada
a fim de ter mais tempo para casa e a família.
O
que acaba por tirar o peso das costas da tradição da senzala, sem a
qual o Brasil não seria quem é.
Tem
uma frase, prima daquela do início desse texto, que acho bastante
pitoresca também: “Se não estudar, vai virar gari''.
Lembrando
que, no ano passado, foram garis que resistiram a uma prefeitura
insensível e a sindicatos que não os representavam, conseguindo um
aumento expressivo em seus salários e benefícios sociais no Rio.
Mostrando a outras profissões respeitadas socialmente e que amargam
aumentos ridículos que é viável lutar por seus direitos. Talvez,
quando crescermos, nós jornalistas, por exemplo, possamos ser como
os garis.
Essas
frases nos remetem à outra, essa historicamente poderosa:
– Você
sabe com quem está falando?
Não
tanto pela arrogância e prepotência, mas porque ela carrega séculos
de nossa formação, lembrando quem fala e quem obedece. E que, na
visão de muita gente, a igualdade de direitos é um discurso fofo
para ser acariciado desde que não interfira em suas necessidades
individuais. Não somos uma sociedade de castas. Mas cada um sabe
qual o seu quadrado.
Acho
que alguém que me pergunta isso precisa tomar urgente algo para a
memória. Se é incapaz de lembrar quem é, o que dirá de como
limpar uma privada? Ou a si mesmo?
“Quem
você pensa que é?” é menos agressiva e útil frente a algum
desmando de um representante do Estado, por exemplo. Mas acho que não
faz tanto sucesso no Brasil como a outra. Porque há duas opções
para reclamar de um abuso de um funcionário: a) dizer que ele não
tem direito de agir com violência, por exemplo; b) dizer que ele vai
se dar mal porque você é fodástico. Por aqui, desconfio que
optamos pela letra “b''.
A
frase vai se adaptando conforme o ambiente e pode, agregando valores,
assumir outras formas:
– Teu
salário paga a comida do meu cachorro.
– Eu
conheço gente importante, sabia?
– Você
vai perder seu emprego, meu irmão.
– Isso
que dá vir a um lugar que tem essa gentinha.
No
Brasil, de uma maneira geral, se você quiser viver em uma bolha a
vida inteira, consegue. Tenho amigos que conhecem muito bem algumas
cidades da Europa e os Estados Unidos, mas só foram à Itaquera pela
primeira vez na Copa de 2014.
Essa
ausência da cultura da alteridade leva ao medo e colabora com
comportamentos e frases bizarras, revelando o lado mais sombrio da
alma de cada um.
O
que é extremamente complicado porque o Brasil é composto em grande
parte por essa “gentinha pobre que não sabe com quem está
falando''.
Não
se espera que todos defendam igualdade (é o sistema, estúpido!),
mas, pelo menos, que concordem com um relacionamento mínimo para
viabilizar a convivência pacífica.
O
ideal é que a resposta para:
– Você
sabe com quem está falando?
Seja
algo como:
– Quem
você pensa que é?
A
coisa ruim é que mesmo com muito trabalho de educação para a
cidadania, concomitante a mudanças estruturais para garantir que a
República realmente sirva ao interesse comum, coisa da qual ainda
estamos longe, ainda assim levará um rosário de gerações até que
frases forjadas pelo preconceito e a soberba tornem-se peça de
museu.
Leonardo
Sakamoto, in blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br
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