Em
15 de fevereiro – Minha situação aqui na pensão é
insustentável. Vieram morar aqui dois estudantes integralistas.
Hoje, no almoço, um deles falou comigo. Tinham-lhe dito que eu era
jornalista; em que jornal eu trabalhava? Respondi que em jornal
nenhum. Diante do embaraço dele, expliquei: na revista Vida
Doméstica. Puxou conversa sobre política, mas eu disse com
superioridade:
-
Minha política é o Flamengo!
Ele
observou gravemente que o futebol serve para distrair o povo de seus
problemas. Enquanto o povo está discutindo futebol, o comunismo está
tramando golpes sangrentos. Lenine disse que a religião é o ópio
do povo. O futebol é, digamos, uma espécie de maconha. Explicou que
citava Lenine porque se tratava de um gênio, mas gênio inclinado
para o mal.
Falou
muito e fiquei calado, fazendo o possível para fazer um ar de
admiração atenta; mas creio que tinha apenas cara de palerma. Eu me
pergunto se ele não é capaz de telefonar para a Vida Doméstica e
perguntar o que faz lá um sujeito chamado Lauro Guedes, que é meu
nome aqui na pensão.
Dia
16 – O outro integralista me perguntou se já li alguma obra de
Spengler. Respondi que não. Ele fez questão de me emprestar um
livro.
Dia
18 – Ontem me arrisquei, indo à cidade. Procurei o Dr. Fontoura no
seu consultório. Ele ficou assustadíssimo. Disse que eu cometia uma
imprudência enorme indo ao centro, pois o meu nome saíra num
jornal, envolvido na fundacão de uma associação que a polícia
descobriu ser comunista. Que a situação dele também era delicada,
não convinha que eu o procurasse. Deu-me um pouco de dinheiro.
Dia
21 – O que me aconteceu foi surpreendente. Fui à cidade procurar o
senador, com quem, por sinal, não consegui falar. Estive com o
Clóvis, que me falou da prisão, ontem, de vários amigos, inclusive
o Dunga. Quando subia no ônibus, alguém me agarrou pelo braço.
Tremi de susto. Voltei-me; era um sujeito desconhecido, de chapéu.
Perguntou se me lembrava dele. Embaraçado, disse-lhe que não podia
perder aquele ônibus; ele disse que vinha comigo. Só podia ser
tira, ainda mais de chapéu.
Não
era tira, era careca. Não o reconheci logo porque havia raspado os
grandes bigodes louros que sempre usou. É um securitário, Edgar,
que conheci por ocasião de uma greve. Antes de chegar à pensão,
tive um palpite; saltei do ônibus com Edgar e telefonei do café da
esquina perguntando se havia algum recado para mim. Dona Dolores me
disse que estavam lá dois amigos me esperando; perguntou se eu
queria que ela chamasse. Como não dei meu endereço a ninguém, vi
logo do que se tratava. De qualquer modo, esperei; Dona Dolores
voltou e disse que os dois tinham ido embora e não tinham deixado os
nomes. Depois, mais baixo, disse: “Não venha aqui não.” Estou
escrevendo na casa do Edgar onde vou dormir esta noite.
Dia
24 – Edgar é formidável. Não me deixou sair de sua casa. Sua
mulher é muito simpática; tem uma filhinha de dois anos. Preciso
arranjar dinheiro e dar o fora, pois se por acaso eu for preso aqui,
Edgar também irá comigo, e talvez até Alice. Alice é muito
esclarecida. Edgar foi à pensão ver se trazia minhas coisas, mas
Dona Dolores disse que a polícia carregou tudo. Até o livro de
Spengler foi em cana. Ainda bem que meus papéis mais importantes
estavam na pasta.
Dia
26 – Telefonei ao Clóvis, e ele veio me ver ontem. A polícia me
procurou também na redação Ontem foi presa a Linda, mulher do
Alcir; saiu nos jornais. Com um bilhete meu, o Clóvis procurou o
senador, que me mandou algum dinheiro, ele disse ao Clóvis que devia
muitos favores ao meu falecido pai, o que é verdade; de qualquer
modo, foi alinhado. Eu podia fugir para Minas com esse dinheiro, mas
tive de pedir ao Clóvis para me comprar roupa, escova de dentes,
chinelos, etc., pois estava usando as roupas do Edgar, que é um
pouco mais baixo do que eu. Como não tenho o que fazer, e não me
arrisco mais a sair de casa, eu mesmo quis lavar minha roupa, mas
Alice não deixa de modo algum.
Clóvis
foi à editora ver se arranja uma tradução qualquer para eu fazer,
com uma parte do dinheiro adiantada, mas o diretor está em São
Paulo.
Dia
28 – Estou com os nervos arrebentados por causa da Alice – quando
Edgar vai para a Companhia de Seguros... seria o cúmulo de
sem-vergonhice! Se eu tivesse qualquer coisa com essa mulher, seria o
último dos cachorros.
1º
de março – Sou.
Rubem
Braga, in Os melhores contos
Nenhum comentário:
Postar um comentário