Fonte: Google Imagens
Os
americanos são uma gente divertida. Lá tem sempre uma coisa na
moda, a que eles dão o nome de fad.
Desses fads
um dos mais persistentes tem sido a chamada PC
language –
politically
correct language,
linguagem politicamente correta. O que é isso? Há jeitos de falar e
jeitos errados de falar. Jeito certo de falar é aquele que está de
acordo com a ideologia. Jeito errado de falar é aquele que não está
de acordo com a ideologia – heresias. As heresias na fala não
podem ser toleradas. Têm de ser eliminadas. A Inquisição foi um
exercício de PC
language.
Quem falasse linguagem diferente daquela que a Igreja havia definido
como correta ia para a fogueira. O Generalíssimo Franco também fez
uso da PC
language.
A palavra “seio” foi proibida, como erótica. O erótico é
herético... Poeta que usasse a palavra “seio” num poema corria o
risco de ir para o garrote vil. A PC
language
americana proíbe que se use a palavra “ele” para se referir a
Deus. Isso é machismo! Então Deus é homem? A PC
language
proíbe que se contem piadas que façam gozação e humilhem certos
grupos sociais como gays, negros, mulheres. Eu acho que está muito
certo. Mas logo aparecem os ultraortodoxos. Os ultraortodoxos se põem
logo a caçar bruxas e a policiar a fala. Falar é muito perigoso...
Uma vez, fazendo uma fala nos USA, usei a expressão “to
be impregnated”
— ser engravidado — num sentido metafórico. Pois uma senhora, do
auditório, interferiu prontamente em nome da PC
language,
dizendo que eu estava usando “sexist
language”…
Encontrei
numa livraria de aeroporto um livro de estórias infantis reescritas
segundo a PC
language.
Claro, o escritor estava fazendo gozação. Aí me deu um impulso de
reescrever a estória do Chapeuzinho Vermelho para os dias de hoje,
seguindo as linhas da PC
language,
mesmo porque não há criança que acredite na estória como foi
escrita.
“Era
uma vez uma jovem adolescente a quem todos conheciam pelo apelido de
Rúbia. Rúbia é uma palavra derivada do latim, rubeus,
que quer dizer vermelho, ruivo. Rúbia era ruiva. Ruiva porque
tingira o seu cabelo castanho que ela considerava vulgar. Ela pensava
que uma ruiva teria mais chances de chamar a atenção de um
empresário de modelos que uma morena. Morenas há muitas. O vermelho
dos seus cabelos era confirmado pelo seu temperamento: ela era fogo e
enrubescia quando ficava brava.[Nota 1: Se, nessa estória, eu lhe
desse o nome de Chapeuzinho Vermelho ninguém acreditaria. As
adolescentes de hoje não andam por aí usando chapeuzinhos
vermelhos…]
Rúbia
morava com sua mãe numa linda mansão no condomínio "Omegaville".
Pois numa noite, por volta das 10 horas, sua mãe lhe disse: "Rubinha
querida, quero que você me faça um favor..." Rúbia pensou:
"Lá vem a mãe de novo". E gritou: "De jeito nenhum.
Estou vendo televisão...". "Mas eu ia até deixar você
dirigir o meu BMW...", disse a mãe. Rúbia se levantou de um
pulo. Para guiar o BMW ela era capaz de fazer qualquer coisa. "Que
é que você quer que eu faça, mamãezinha querida?", ela
disse. "Quero que você vá levar uma cesta básica para sua
vovozinha, lá no Parque Oziel. Você sabe: andar de BMW, depois das
10 da noite, no Parque Oziel é perigoso. Os sequestradores estão à
espreita..." [Nota 2: a estória original contém dois
problemas, relativos ao caráter e às intenções da mãe. Primeiro:
mandar uma menina pequena, sozinha, pela floresta, sabendo que havia
um lobo solto — ou a mãe era um tola irresponsável ou ela estava
com impulsos assassinos em relação à filha, desejando que o lobo a
comesse. O segundo problema: viviam sozinhas a mãe e a filha; não
há referências a um pai ou marido. Então, qual a razão para que a
avó morasse do outro lado da floresta? Não seria mais prático que
elas vivessem juntas? Chapeuzinho não teria que enfrentar um lobo
para que a vovozinha comesse queijos, bolos e ovos…]
Rúbia
já estava saindo da garagem com o BMW quando sua mãe lhe gritou: "A
cesta básica! Você está se esquecendo da cesta básica!" Com
a cesta básica no BMW Rúbia foi para a casa da vovozinha, no Parque
Oziel. Foi quando o inesperado aconteceu. Um pneu furou. Até mesmo
pneus de BMWs furam. Rúbia se sentiu perdida. Com medo, não. Ela
não tinha medo. O problema era sujar as mãos para trocar o pneu.
Foi quando uma Mercedes se aproximou dirigida por um senhor elegante
que usava óculos escuros. Há pessoas que usam óculos escuros mesmo
de noite. A Mercedes parou e o homem de óculos escuros saiu.
"Precisando de ajuda, boneca", ele perguntou? "Claro",
ela respondeu. "Preciso que me ajudem a trocar o pneu furado".
"Pois vou ajudar você" disse o homem. "Você precisa
de proteção. Esse lugar é muito perigoso. A propósito, deixe que
me apresente. Meu nome é Crescêncio Lobo, às suas ordens". Aí
ele se pôs a trocar o pneu cantarolando baixinho uma canção que
sua mãe lhe cantara: "Hoje estou contente, vai haver festança,
tenho um bom petisco para encher a minha pança..." Rúbia,
olhando para o Crescêncio Lobo, pensou: "Que homem gentil e
prestativo! E ainda canta enquanto trabalha... É dono de uma
Mercedes! Acho que minhas orações foram atendidas!" "Pronto",
ele disse. "Para onde você está indo, boneca?" "Vou
levar uma cesta básica para minha avó." "Pois eu vou
segui-la para protegê-la..." E assim, Rúbia, sorridente
sonhadora, se dirigiu para a casa de sua avó escoltada por
Crescêncio Lobo.
Ao
chegar à casa da avó Crescêncio Lobo se surpreendeu. Pensou que ia
encontrar uma velhinha, parecida com a avó de Chapeuzinho Vermelho.
Que nada! Era uma linda mulher, uma senhora elegante, fina, de voz
suave, inteligente. Logo os dois estavam envolvidos numa animada
conversa, Crescêncio Lobo encantado com o suave charme e a
inteligência da avó, a avó encantada com o encantamento que
Crescêncio Lobo sentia por ela. Crescêncio Lobo pensou: "Se
não fossem essas rugas, ela seria uma linda mulher…"
Rúbia
percebeu o que estava rolando, e foi ficando com raiva, vermelha, até
que teve um ataque histérico. Como admitir que Crescêncio Lobo
preferisse uma velha a uma adolescente? Começou a gritar, e por mais
que os dois se esforçassem, não conseguiram acalmá-la. Passava por
ali, acidentalmente, uma viatura do 5º Distrito Policial. Os
policiais, ouvindo a gritaria, imaginaram que um crime estava
acontecendo. Pararam a viatura e entraram na casa. E o que
encontraram foi aquela cena ridícula: uma adolescente ruiva,
desgrenhada, gritando como louca, enquanto a avó e o Crescêncio
Lobo tentavam acalmá-la. Os policiais perceberam logo que se tratava
de uma emergência psiquiátrica e, com a maior delicadeza, (os
policiais do 5º DP são sempre assim. Também pudera! O delegado
chefe trabalha ouvindo música clássica!) convenceram Rúbia a
acompanhá-los até um hospital para ser medicada. Rúbia não
resistiu porque ela já estava encantada com a força e o charme do
policial que a tomava pela mão. Afinal, aquele policial era lindo e
forte!
Quanto
à avó e ao Crescêncio Lobo, aquela noite foi início de uma
relação amorosa maravilhosa. Crescêncio Lobo percebeu que não há
cara de adolescente cabeça-de-vento que se compare ao estilo de uma
senhora inteligente e experiente. E a avó, que ouvira de uma
feminista canadense que o melhor remédio para a velhice são os
galetos ao primo canto, entregou-se gulosamente a esse hábito
alimentar gaúcho. Crescêncio Lobo pagou-lhe uma plástica geral e a
avó ficou novinha. E viveram muito felizes, por muitos anos. Quanto
à Rúbia, aquela crise foi o início de uma feliz relação com o
policial do 5º DP, que tinha um mestrado em psicologia da
adolescência...”
Rubem
Alves,
in Correio
Popular – Campinas, edição de 02/05/2002
Nenhum comentário:
Postar um comentário