domingo, 16 de agosto de 2015

A multidão de Vidas Secas com 4G

Através da dramática morte da cachorra Baleia, Graciliano Ramos (“Vidas Secas”) pode nos ajudar a pensar nossa indiferença, submersos que estamos na multidão de pessoas que perambulam: vazias, fechadas em si mesmas, ouvindo música no Iphone e com os olhos fixados no celular. Vida de cão, mas sem céu de preás. A descrença é a norma e o osso é para hoje.


Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias” (Fabiano, personagem de “Vidas Secas”)
O alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) é um dos grandes mestres de nossa literatura. Sua escrita é rude, seca, direta, mas não sem profundas emoções. Seu recorte do mundo procura retratar a vida como ela é, com todas as suas mazelas, injustiças, opressões e angústias, mas o olhar de Graciliano nos abre janelas mentais para a beleza humana, os laços de amizade e amor, mesmo em contextos desgraçados pela miséria social e pelo imaginário catastrófico.
Em 1938, Graciliano lançou seu quarto romance, intitulado “Vidas Secas”. A sofrida história do pobre nordestino Fabiano, sua esposa Sinhá Vitória, seus dois filhos e a companhia de uma cachorra de família chamada Baleia sensibiliza até os corações mais gelados. A saga da família reflete a época de grave crise econômica, seca e fluxos migratórios, mas o romance não é datado. Através do regionalismo nordestino, o autor toca as fibras do humano com toda a complexidade.
Não quero entrar nos detalhes desta obra. Se você ainda não leu, recomendo que o faça antes de morrer. É linda. Nela encontrei um dos capítulos mais marcantes de nossa literatura. A morte de Baleia. O quadro é dramático.
Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam no fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida”.
Não precisa ser um militante dos direitos dos animais para mergulhar em profunda compaixão. Com todas as dificuldades de uma vida paupérrima e explorados por um patrão sem escrúpulos, chorava-se a dor daquele bicho que, na verdade, era “como uma pessoa da família”.
A agonia em torno da morte fez de Baleia a protagonista de um tipo diferente de Paixão, com detalhes psicológicos impensáveis para uma cadela que se entrega ao óbito com espinhos de mandacaru na carne, aguardando a ressurreição onde “acordaria feliz num mundo cheio de preás” deliciosos, gordos, enormes. Talvez você pudesse imaginar um céu de chocolates e celulares de última geração com internet veloz. Imersos nos desafios cotidianos, cada ser humano poderá construir um céu particular, dando algum sentido último para uma existência dilacerada. Baleia, mesmo sendo uma simples e faminta cachorra, tinha o seu paraíso particular. Aqui, humano e não-humano se tocam.
A Paixão de Baleia não virou sexta-feira santa, mas pode mudar nossa visão sobre os animais, se ainda há sensibilidade. Imaginá-los como seres sencientes, dotados de capacidade para sentir carinho e dor, é uma ruptura cognitiva feita por um texto do final da década de 1930. Portanto, muito antes da onda verde/ecológica que provocou um giro na compreensão sobre o direito das espécies – não somente a humana, é claro.
O emagrecimento causado pelo sem ter o que comer, as manchas pelo corpo, as chagas que não cicatrizam e as moscas que rondam não são privilégios de alguns animais doentes ou maltratados e abandonados, a beira da morte. Essas imagens se aplicam às multidões que sobrevivem e perambulam pelas grandes cidades. São vidas secas, pobres, sem sentido ou profundidade, desidratadas e desenraizadas dos velhos laços de solidariedade social.
A metáfora de uma desgraçada vida de cão - onde até os ossos são roubados por aqueles que não precisam - assume aqui um realismo fantástico, muito além da dimensão econômica. Emagrecimento da razão, manchas e chagas de uma vida onde precisamos sorrir, manter a beleza das formas e consumir. Sentimos que os significados se transformaram em moscas. Apenas nos rondam. Incomodam, mas abanamos o rabo e nos permitimos morrer em vida sem mais sonhar com algum tipo de céu. Na prática, mesmo quando religiosos, somos todos ateus com demandas pragmáticas, de curto prazo. A cachorra Baleia ainda sustentava uma utopia. E nós? Basta um sanduíche no Burger King com Coca-Cola e, claro, um selfie para postar no facebook com a hashtag#ComendoFeliz.
Marcio Sales Saraiva, in www.obviousmag.org

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