Através
da dramática morte da cachorra Baleia, Graciliano Ramos (“Vidas
Secas”) pode nos ajudar a pensar nossa indiferença, submersos que
estamos na multidão de pessoas que perambulam: vazias, fechadas em
si mesmas, ouvindo música no Iphone e com os olhos fixados no
celular. Vida de cão, mas sem céu de preás. A descrença é a
norma e o osso é para hoje.
“Era
um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos. Por que
seria que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos?
Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes
porcarias” (Fabiano, personagem de “Vidas Secas”)
O
alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) é um dos grandes mestres de
nossa literatura. Sua escrita é rude, seca, direta, mas não sem
profundas emoções. Seu recorte do mundo procura retratar a vida
como ela é, com todas as suas mazelas, injustiças, opressões e
angústias, mas o olhar de Graciliano nos abre janelas mentais para a
beleza humana, os laços de amizade e amor, mesmo em contextos
desgraçados pela miséria social e pelo imaginário catastrófico.
Em
1938, Graciliano lançou seu quarto romance, intitulado “Vidas
Secas”. A sofrida história do pobre nordestino Fabiano, sua esposa
Sinhá Vitória, seus dois filhos e a companhia de uma cachorra de
família chamada Baleia sensibiliza até os corações mais gelados.
A saga da família reflete a época de grave crise econômica, seca e
fluxos migratórios, mas o romance não é datado. Através do
regionalismo nordestino, o autor toca as fibras do humano com toda a
complexidade.
Não
quero entrar nos detalhes desta obra. Se você ainda não leu,
recomendo que o faça antes de morrer. É linda. Nela encontrei um
dos capítulos mais marcantes de nossa literatura. A morte de Baleia.
O quadro é dramático.
“Tinha
emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas
avultavam no fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e
sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos
beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida”.
Não
precisa ser um militante dos direitos dos animais para mergulhar em
profunda compaixão. Com todas as dificuldades de uma vida paupérrima
e explorados por um patrão sem escrúpulos, chorava-se a dor daquele
bicho que, na verdade, era “como uma pessoa da família”.
A
agonia em torno da morte fez de Baleia a protagonista de um tipo
diferente de Paixão, com detalhes psicológicos impensáveis para
uma cadela que se entrega ao óbito com espinhos de mandacaru na
carne, aguardando a ressurreição onde “acordaria feliz num mundo
cheio de preás” deliciosos, gordos, enormes. Talvez você pudesse
imaginar um céu de chocolates e celulares de última geração com
internet veloz. Imersos nos desafios cotidianos, cada ser humano
poderá construir um céu particular, dando algum sentido último
para uma existência dilacerada. Baleia, mesmo sendo uma simples e
faminta cachorra, tinha o seu paraíso particular. Aqui, humano e
não-humano se tocam.
A
Paixão de Baleia não virou sexta-feira santa, mas pode mudar nossa
visão sobre os animais, se ainda há sensibilidade. Imaginá-los
como seres sencientes, dotados de capacidade para sentir carinho e
dor, é uma ruptura cognitiva feita por um texto do final da década
de 1930. Portanto, muito antes da onda verde/ecológica que provocou
um giro na compreensão sobre o direito das espécies – não
somente a humana, é claro.
O
emagrecimento causado pelo sem ter o que comer, as manchas pelo
corpo, as chagas que não cicatrizam e as moscas que rondam não são
privilégios de alguns animais doentes ou maltratados e abandonados,
a beira da morte. Essas imagens se aplicam às multidões que
sobrevivem e perambulam pelas grandes cidades. São vidas secas,
pobres, sem sentido ou profundidade, desidratadas e desenraizadas dos
velhos laços de solidariedade social.
A
metáfora de uma desgraçada vida de cão - onde até os ossos são
roubados por aqueles que não precisam - assume aqui um realismo
fantástico, muito além da dimensão econômica. Emagrecimento da
razão, manchas e chagas de uma vida onde precisamos sorrir, manter a
beleza das formas e consumir. Sentimos que os significados se
transformaram em moscas. Apenas nos rondam. Incomodam, mas abanamos o
rabo e nos permitimos morrer em vida sem mais sonhar com algum tipo
de céu. Na prática, mesmo quando religiosos, somos todos ateus com
demandas pragmáticas, de curto prazo. A cachorra Baleia ainda
sustentava uma utopia. E nós? Basta um sanduíche no Burger
King com
Coca-Cola e, claro, um selfie
para
postar no facebook com a hashtag#ComendoFeliz.
Marcio
Sales Saraiva, in
www.obviousmag.org
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