De
todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do
viver juntos e da cidadania é a audição. Disse o escritor sagrado:
“No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era
o silêncio.” É do silêncio que nasce o ouvir. Só posso ouvir a
palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso ouvir
a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não
ouve. Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima. Eles falam,
sim. Para ouvir as vozes do silêncio. Veja esse poema de Fernando
Pessoa, dirigido a um poeta: “Cessa o teu canto! Cessa, que,
enquanto o ouvi, ouvia uma outra voz como que vindo nos interstícios
do brando encanto com que o teu canto vinha até nós. Ouvi-te e
ouvia-a no mesmo tempo e diferentes, juntas a cantar. E a melodia que
não havia se agora a lembro, faz-me chorar...” A magia do poema
não está nas palavras do poeta. Está nos interstícios silenciosos
que há entre as suas palavras. É nesse silêncio que se ouve a
melodia que não havia. Aí a magia acontece: a melodia me faz
chorar.
Não
nos sentimos em casa no silêncio. Quando a conversa para por não
haver o que dizer tratamos logo de falar qualquer coisa, para por um
fim no silêncio. Vez por outra tenho vontade de escrever um ensaio
sobre a psicologia dos elevadores. Ali estamos, nós dois, fechados
naquele cubículo. Um diante do outro. Olhamos nos olhos um do outro?
Ou olhamos para o chão? Nada temos a falar. Esse silêncio, é como
se fosse uma ofensa. Aí falamos sobre o tempo. Mas nós dois bem
sabemos que se trata de uma farsa para encher o tempo até que o
elevador pare.
Os
orientais entendem melhor do que nós. Se não me engano o nome do
filme é “Aconteceu em Tóquio”. Duas velhinhas se visitavam. Por
horas ficavam juntas, sem dizer uma única palavra. Nada diziam
porque no seu silêncio morava um mundo. Faziam silêncio não por
não ter nada a dizer, mas porque o que tinham a dizer não cabia em
palavras. A filosofia ocidental é obcecada pela questão do Ser. A
filosofia oriental, pela questão do Vazio, do Nada. É no Vazio da
jarra que se colocam flores.
O
aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A
prática educativa tradicional se inicia com a palavra do professor.
A menininha, Andréa, voltava do seu primeiro dia na creche. “Como
é a professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu:
“Ela grita...” Não bastava que a professora falasse. Ela
gritava. Não me lembro de que minha primeira professora, Da.
Clotilde, tivesse jamais gritado. Mas me lembro dos gritos
esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o
espaço de medo. Na escola a violência começa com estupros verbais.
Milan
Kundera conta a estória de Tamina, uma garçonete. “Todo mundo
gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será
que ela ouve mesmo? Não sei... O que conta é que ela não
interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas
falam. Uma fala e outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como
eu, eu...’ e começa a falar de si até que a primeira consiga por
sua vez cortar: ‘é exatamente como eu, eu...’Essa frase ‘é
exatamente como eu...’ parece ser uma maneira de continuar a
reflexão do outro, mas é um engodo. É uma revolta brutal contra
uma violência brutal: um esforço para libertar o nosso ouvido da
escravidão e ocupar à força o ouvido do adversário. Pois toda a
vida do homem entre os seus semelhantes nada mais é do que um
combate para se apossar do ouvido do outro...”
Será
que era isso que acontecia na escola tradicional? O professor se
apossando do ouvido do aluno ( pois não é essa a sua missão?),
penetrando-o com a sua fala fálica e estuprando-o com a força da
autoridade e a ameaça de castigos, sem se dar conta de que no ouvido
silencioso do aluno há uma melodia que se toca. Talvez seja essa a
razão porque há tantos cursos de oratória, procurados por
políticos e executivos, mas não haja cursos de escutatória. Todo
mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.
Todo
mundo quer ser escutado. (Como não há quem os escute, os adultos
procuram um psicanalista, profissional pago do escutar.) Toda criança
também quer ser escutada. Encontrei, na revista pedagógica italiana
“Cem Mondialità” a sugestão de que, antes de se iniciarem as
atividades de ensino e aprendizagem, os professores se dedicassem por
semanas, talvez meses, a simplesmente ouvir as crianças. No silêncio
das crianças há um programa de vida: sonhos. É dos sonhos que
nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo
usa para transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar
as crianças para que a sua inteligência desabroche.
Sugiro
então aos professores que, ao lado da sua justa preocupação com o
falar claro, tenham também uma justa preocupação com o escutar
claro. Amamos não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que
escuta bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se
assentar...
Rubem
Alves
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