domingo, 5 de julho de 2015

Não se deixa para trás um cachorro


O ruído de uma moto passando na estrada é acompanhado pelos latidos do Bagre, roucos como berros de um fumante inveterado. O pai franze a testa. Não atura esse vira-lata insolente e barulhento e o mantém somente por senso de responsabilidade. Tu pode deixar pra trás um filho, um irmão, um pai, com certeza uma mulher, há circunstâncias em que tudo isso é justificável, mas não tem o direito de deixar pra trás um cachorro depois de cuidar dele por um certo tempo, disse-lhe uma vez quando ainda era criança e a família completa vivia numa casa em Ipanema pela qual passaram meia dúzia de cães. Os cachorros abdicam pra sempre de parte do instinto pra viver com as pessoas e nunca mais podem recuperá-lo por completo. Um cachorro fiel é um animal aleijado. É um pacto que não pode ser desfeito por nós. O cachorro pode desfazê-lo, embora seja raro. Mas o homem não tem esse direito, dizia o pai. A tosse seca do Bagre devia ser aturada, portanto. É o que fazem agora os dois, o pai e Beta, a velha pastora australiana deitada a seu lado, uma cadela de fato admirável, inteligente e circunspecta, forte e parruda como um javali.”
Daniel Galera, in Barba Ensopada de Sangue 

Nenhum comentário:

Postar um comentário