sexta-feira, 19 de junho de 2015

Galileu está de volta

Galileu está de volta

Com sua magrelice amalucada, Denise Fraga é sempre garantia de sucesso para as peças que protagoniza. Mas há outros motivos, sem dúvida, para que “Galileu Galilei”, de Bertolt Brecht (1898-1956) esteja lotando o Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo).
É que faz bem ver no palco, de vez em quando, as coisas serem tratadas pelo nome que realmente têm. Obscurantismo é obscurantismo, razão é razão, fatos são fatos, e medo dos fatos é medo dos fatos.
Assim, numa das mais fortes e interessantes cenas da peça, o grande astrônomo tenta convencer as autoridades de Florença a olhar pelo telescópio. Quer informá-las de uma pequena e fundamental descoberta: havia satélites girando em torno de Júpiter.
O planeta não estava, portanto, incrustado numa esfera de cristal pairando acima de nossas cabeças. Se fosse assim, os satélites teriam de perfurar o cristal para dar uma volta completa em seu redor.
Os sábios se recusam a olhar pelo telescópio. Melhor não saber dos fatos do que destruir uma concepção tradicional do mundo. Os planetas girando soltos no éter? A Terra, um grão periférico no cosmos? Impossível.
Em outra cena, um amigo do astrônomo resolve submeter-se às pressões da igreja e desistir da ciência. Conta para Galileu como vivem seus pais agricultores. A mãe, depois de dar à luz não se sabe quantos filhos, hoje está murcha e acabada. O pai, que nada sabe das estrelas, só das azeitonas que cultiva, tem as costas curvas e as mãos deformadas.
Iremos tirar dessa gente a esperança e o consolo da religião? Não é melhor que vivam na ignorância do que confrontarem-se com uma verdade que lhes tira o sentido de tudo?
Galileu responde com astúcia. Acabou de descobrir o mecanismo que rege o movimento das marés. Você tem interesse no assunto? O amigo se precipita sobre as fórmulas ainda frescas de tinta. O fruto do conhecimento, brinca o protagonista da peça, continua a ser provado com muita gula…
E os velhos dogmas que consolavam o sofrimento dos agricultores? A resposta de Brecht é radical. Não deve haver consolo nenhum.
O alívio oferecido pela religião faz parte da máquina que produz o sofrimento. Querer a verdade científica é também lutar contra o que há de falso (de irracional, de injustificável, de ilegítimo) na opressão de um homem sobre o outro.
A arte de Brecht está, naturalmente, em evitar que essas ideias se degenerem em panfleto. Os dois lados do debate são defendidos com inteligência; Galileu, como se sabe, é falível, amedronta-se diante da Inquisição e é bem injusto com a própria filha.
Surgem aí alguns problemas na montagem do Tuca. Talvez exista algo de revolucionário, de “copernicano”, quando uma mulher fisicamente frágil assume o papel de um cientista gordo, jupiteriano, colossal.
Perde-se, entretanto, uma ambiguidade importante –a de ver o grande cientista encolher-se diante da Inquisição. Diminui-se também, a meu ver, o incômodo das relações entre Galileu e sua filha; viram quase coleguinhas.
Aposta-se, por fim, mais nas certezas do público do que na desestabilização intelectual. Como Brecht é marxista, toca-se a “Internacional” e os artistas aparecem com roupa de russos. Como “somos de esquerda”, um panelaço antipetista é posto em cena, com madames contestando Galileu.
Não consigo me convencer de que a verdade científica esteja do lado de Aldo Rebelo ou Rui Falcão. Imagino que nem mesmo para os atores da peça faz sentido colocar Dilma, Lula e Galileu no mesmo time.
Brecht, de todo modo, está no teatro da PUC. Por que impedir uma cátedra Foucault na mesma universidade? O assunto renderia páginas e páginas que não me sinto motivado a escrever; eles que se entendam lá dentro.
Mas tudo me parece um problema de relações públicas. Que imagem a PUC quer transmitir? Para o público externo e leigo, a proibição será vista como obscurantista e inquisitorial. Para o público interno, estará sendo preservada a “identidade” religiosa da instituição.
Trata-se de um preço alto demais para responder a problemas de identidade. Depois de Galileu, o catolicismo sobrevive reduzindo sua carga de mitologia e cultivando o essencial dos Evangelhos. Claro, os livros de Foucault não estão proibidos na PUC. Mas será que uma cátedra Foucault representa ameaça maior que uma cátedra Galileu?
Marcelo Coelho, in Folha de S. Paulo

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