Com
sua magrelice amalucada, Denise Fraga é sempre garantia de sucesso
para as peças que protagoniza. Mas há outros motivos, sem dúvida,
para que “Galileu Galilei”, de Bertolt Brecht (1898-1956) esteja
lotando o Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo).
É
que faz bem ver no palco, de vez em quando, as coisas serem tratadas
pelo nome que realmente têm. Obscurantismo é obscurantismo, razão
é razão, fatos são fatos, e medo dos fatos é medo dos fatos.
Assim,
numa das mais fortes e interessantes cenas da peça, o grande
astrônomo tenta convencer as autoridades de Florença a olhar pelo
telescópio. Quer informá-las de uma pequena e fundamental
descoberta: havia satélites girando em torno de Júpiter.
O
planeta não estava, portanto, incrustado numa esfera de cristal
pairando acima de nossas cabeças. Se fosse assim, os satélites
teriam de perfurar o cristal para dar uma volta completa em seu
redor.
Os
sábios se recusam a olhar pelo telescópio. Melhor não saber dos
fatos do que destruir uma concepção tradicional do mundo. Os
planetas girando soltos no éter? A Terra, um grão periférico no
cosmos? Impossível.
Em
outra cena, um amigo do astrônomo resolve submeter-se às pressões
da igreja e desistir da ciência. Conta para Galileu como vivem seus
pais agricultores. A mãe, depois de dar à luz não se sabe quantos
filhos, hoje está murcha e acabada. O pai, que nada sabe das
estrelas, só das azeitonas que cultiva, tem as costas curvas e as
mãos deformadas.
Iremos
tirar dessa gente a esperança e o consolo da religião? Não é
melhor que vivam na ignorância do que confrontarem-se com uma
verdade que lhes tira o sentido de tudo?
Galileu
responde com astúcia. Acabou de descobrir o mecanismo que rege o
movimento das marés. Você tem interesse no assunto? O amigo se
precipita sobre as fórmulas ainda frescas de tinta. O fruto do
conhecimento, brinca o protagonista da peça, continua a ser provado
com muita gula…
E
os velhos dogmas que consolavam o sofrimento dos agricultores? A
resposta de Brecht é radical. Não deve haver consolo nenhum.
O
alívio oferecido pela religião faz parte da máquina que produz o
sofrimento. Querer a verdade científica é também lutar contra o
que há de falso (de irracional, de injustificável, de ilegítimo)
na opressão de um homem sobre o outro.
A
arte de Brecht está, naturalmente, em evitar que essas ideias se
degenerem em panfleto. Os dois lados do debate são defendidos com
inteligência; Galileu, como se sabe, é falível, amedronta-se
diante da Inquisição e é bem injusto com a própria filha.
Surgem
aí alguns problemas na montagem do Tuca. Talvez exista algo de
revolucionário, de “copernicano”, quando uma mulher fisicamente
frágil assume o papel de um cientista gordo, jupiteriano, colossal.
Perde-se,
entretanto, uma ambiguidade importante –a de ver o grande cientista
encolher-se diante da Inquisição. Diminui-se também, a meu ver, o
incômodo das relações entre Galileu e sua filha; viram quase
coleguinhas.
Aposta-se,
por fim, mais nas certezas do público do que na desestabilização
intelectual. Como Brecht é marxista, toca-se a “Internacional” e
os artistas aparecem com roupa de russos. Como “somos de esquerda”,
um panelaço antipetista é posto em cena, com madames contestando
Galileu.
Não
consigo me convencer de que a verdade científica esteja do lado de
Aldo Rebelo ou Rui Falcão. Imagino que nem mesmo para os atores da
peça faz sentido colocar Dilma, Lula e Galileu no mesmo time.
Brecht,
de todo modo, está no teatro da PUC. Por que impedir uma cátedra
Foucault na mesma universidade? O assunto renderia páginas e páginas
que não me sinto motivado a escrever; eles que se entendam lá
dentro.
Mas
tudo me parece um problema de relações públicas. Que imagem a PUC
quer transmitir? Para o público externo e leigo, a proibição será
vista como obscurantista e inquisitorial. Para o público interno,
estará sendo preservada a “identidade” religiosa da instituição.
Trata-se
de um preço alto demais para responder a problemas de identidade.
Depois de Galileu, o catolicismo sobrevive reduzindo sua carga de
mitologia e cultivando o essencial dos Evangelhos. Claro, os livros
de Foucault não estão proibidos na PUC. Mas será que uma cátedra
Foucault representa ameaça maior que uma cátedra Galileu?
Marcelo
Coelho, in Folha de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário