A
miséria da minha condição não é estorvada por estas palavras
conjugadas, com que formo, pouco a pouco, o meu livro casual e
meditado. Subsisto nulo no fundo de toda a expressão, como um pó
indissolúvel no fundo do copo de onde se bebeu só água. Escrevo a
minha literatura como escrevo os meus lançamentos — com cuidado e
indiferença. Ante o vasto céu estrelado e o enigma de muitas almas,
a noite do abismo incógnito e o choro de nada se compreender —
ante tudo isto o que escrevo no caixa auxiliar e o que escrevo neste
papel da alma são coisas igualmente restritas à Rua dos Douradores,
muito pouco aos grandes espaços milionários do universo.
Tudo
isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja
lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas,
mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo que
sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão
alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos
nossos próprios espectadores ativos, nossos deuses por licença da
Câmara.
Fernando
Pessoa, in O
livro do desassossego
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