Na
noite do dilúvio, tentando alcançar a pé minha casa, eu me senti
bêbado e louco. Caía uma tromba-d'água do céu, e tão espessa que
eu mal conseguia respirar. Minhas pernas venciam a custo a densidade
da cheia, que me passava dos joelhos; mas eu prosseguia com raiva dos
elementos desencandeados, com raiva da cidade passiva ante sua fúria.
Caí e me levantei duas vezes imprecando nomes, desafiando o
aguaceiro e sua mortalha de lama, querendo briga.
Seriam
pelas quatro da manhã e eu me sentia menino e ao mesmo tempo o
último herói do mundo. Era tudo vazio à minha volta, e eu não
suspeitava a catástrofe que, naquele momento mesmo, se abatia sobre
centenas de lares pobres nos morros, o pé-d'água varrendo casebres
que se desfaziam caindo pelas encostas; gente a pedir socorro em
plena queda; corpos esmagados de crianças e adultos a misturar seu
sangue ao barro imundo. Eu seguia cheio de cólera e euforia, o olho
atento aos remoinhos, aos movimentos suspeitos da água, ao chupo dos
bueiros abertos, patinhando violentamente no lençol de chuva. Ao
passar diante de uma garagem inundada, um velho crioulo guardador
compreendeu minha luta e me animou:
-
É para frente que se anda…
Eu
sorri para ele e sua carapinha branca:
-
Fique em paz, meu irmão.
E
pus-me a cantar cantos de guerra. Quando alcancei meu edifício,
brandi meu punho para o alto. Não, não vai ser nem o ressentimento
dos covardes, que cria as ditaduras, nem a fúria dos elementos, que
gera a calamidade, que irão impedir o homem de chegar ao seu destino
- ai dele! - mesmo sabendo de antemão perdida a grande e fatal
partida em que foi lançado. Porque o destino dos homens é a
liberdade: liberdade para amar, para optar e para criar; liberdade
pura e integral, com a dramática beleza dos elementos desencadeados
a que se sucedem céus azuis cheios de luz. Liberdade para viver e
para morrer, sem medo. Liberdade para cantar seu canto rouco diante
da carne translúcida das auroras. Liberdade para desejar, para
conquistar o que não lhe é permitido pela estupidez da convenções
e pela reserva dos bem-pensantes. Liberdade para ganir sua solidão
ante o Infinito. Liberdade para suar sua angústia no Horto da dúvida
e do desespero, e subitamente explodir seu riso claro em pleno
Cosmos:
-
A terra é azul!
Esse
é o grande destino do homem: remover os escombros criados pelo ódio
e partir de novo, no vento da Liberdade, para a frente e para cima.
Que venham os tiranos, que o prendam e torturem, que caiam do céu
bolas de fogo - e ele levante-se, roto e ensangüentado, e com a
força que lhe dá a Vida parte uma vez mais, em direção à
Liberdade.
Vai,
favelado, meu pobre irmão dos morros, enterra os teus mortos, remove
teus escombros, ergue novos barracos de lama e podridão na perigosa
vertente das favelas, recomeça tua vida de música e miséria, e
depois toma umas cachaças e cai no samba. Carnaval vem aí, para te
fazer esquecer teu destino de lama. Ele é a tua liberdade de três
dias, até que recomeces a trabalhar, a roubar, matar, a procriar na
lama. Tens mais um ano à tua frente. Aproveita bem desse privilégio,
porque ninguém pode prever se até o próximo verão uma nova frente
fria vinda da Patagônia não vai encontrar uma grande formação
cúmulos-nimbos (ou será que estou dizendo bobagem, senhores
meteorologistas?) e a cólera de Deus não vai querer cooperar com a
obra de extinção sumária das favelas, tão ao agrado de certos
arianos cariocas...
Vinicius
de Morais, in Para uma menina com uma flor
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