domingo, 19 de abril de 2015

Sonho

Um homem que dorme sustenta em círculo, a seu redor, o fio das horas, a ordenação dos anos e dos mundos. Ao acordar, consulta-os por instinto e neles verifica, em um segundo, o ponto da terra em que se localiza, o tempo que transcorreu até o seu despertar; mas essa ordem pode se confundir e romper. Se, pela madrugada, após uma insônia, o sono vem surpreendê-lo durante a leitura, numa posição bem diferente daquela em que costuma dormir, basta seu braço erguido para parar e fazer recuar o sol, e no primeiro minuto ao despertar já não mais saberá as horas, achando que mal acaba de se deitar. Se adormecer em posição ainda mais desusada e diversa, por exemplo depois do jantar, sentado numa poltrona, então a reviravolta será completa nos mundos fora de órbita, a poltrona mágica o fará viajar a toda velocidade no tempo e no espaço, e, no momento de abrir as pálpebras, julgará estar deitado alguns meses antes, numa região diferente.
Bastaria, no entanto, que eu estivesse dormindo no meu próprio leito e que meu sono fosse profundo, para relaxar-se a tensão do meu espírito; então, este perdia o plano do local onde eu adormecera, e quando eu despertasse no meio da noite, como ignorasse onde me encontrava, nem mesmo saberia, no primeiro instante, quem era; tinha somente, na sua simplicidade primitiva, o sentimento da existência tal como pode palpitar no íntimo de um animal; era mais carente que o homem das cavernas; aí então a lembrança - não ainda do lugar em que estava, mas de outros onde havia morado e onde poderia estar - me chegava como um socorro do alto para me livrar do nada de onde não poderia sair sozinho; num segundo, eu passava por sobre séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, e depois, de camisas de gola virada, recompunham aos poucos os traços originais do meu próprio eu.”
Marcel Proust, in No caminho de Swann

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