Madeira torta, o homem
“Os
sinais dos tempos não são apenas faustos. Há também muitos
infaustos. Aliás, nunca se multiplicaram tanto os profetas de
desventuras como hoje em dia: a morte atômica, a segunda morte, como
foi chamada, a destruição progressiva e irrefreável das próprias
condições de vida nesta terra, o niilismo moral ou a “inversão
de todos os valores”. O século (que chegou ao fim) já começou
com a ideia do declínio, da decadência, ou, para usar uma metáfora
célebre, do crepúsculo. Mas sempre se vai difundindo, sobretudo por
sugestão de teorias físicas apenas ouvidas, o uso de uma palavra
muito forte: catástrofe. Catástrofe atômica, catástrofe
econômica, catástrofe moral. Havíamos nos contentado até ontem
com a metáfora kantiana do homem como madeira torta. Em um dos
ensaios mais fascinantes do rigorosíssimo crítico da razão, Ideia
de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant
perguntou a si mesmo como, de uma madeira torta como a que constitui
o homem, podia sair algo inteiramente reto. Mas o próprio Kant
acreditava na lenta aproximação ao ideal da retificação através
dos “conceitos justos”, “grande experiência” e, sobretudo,
“boa vontade”. Da divisão da sociedade, razão pela qual a
humanidade continua a ir em direção ao pior, e que ele chamava de
terrorista, Kant dizia que “recair no pior não pode ser um estado
constantemente duradouro na espécie humana porque, em um determinado
grau de regressão, ela destruiria a si mesma”. Mas é exatamente a
imagem dessa corrida para a autodestruição que aflora nas visões
catastróficas de hoje. Segundo um dos mais impávidos e melancólicos
defensores da concepção terrorista da história, o homem é um
“animal errado”, não culpado, atenção, porque essa é uma
velha história que conhecemos bem, culpado, porém redimível e,
talvez, sem que ele mesmo saiba, já redimido, mas errado. É
possível retificar uma madeira torta. Porém, parece que o erro do
qual fala esse amaríssimo intérprete do nosso tempo é
incorrigível.”
Norberto
Bobbio,
A
era dos direitos
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