Hoje,
existem pílulas milagrosas, mas eu ainda sou do tempo das grandes
ressacas. As bebedeiras de antigamente eram mais dignas, porque você
as tomava sabendo que no dia seguinte estaria no inferno. Além de
saúde era preciso coragem. As novas gerações não conhecem
ressaca, o que talvez explique a falência dos velhos valores. A
ressaca era a prova de que a retribuição divina existe e que nenhum
prazer ficará sem castigo.
Cada
porre era um desafio ao céu e às suas feras. E elas vinham: Náusea,
Azia, Dor de Cabeça, Dúvidas Existenciais – as golfadas. Hoje, as
bebedeiras não têm a mesma grandeza. São inconsequentes,
literalmente. Não é que eu fosse um bêbado, mas me lembro de todos
os sábados de minha adolescência como uma luta desigual entre a
cuba-libre e o meu instinto de autopreservação. A cuba-libre
ganhava sempre. Já dos domingos me lembro de muito pouco, salvo a
tontura e o desejo de morte.
Jurava
que nunca mais ia beber, mas, antes dos trinta, “nunca mais” dura
pouco. Ou então o próximo sábado custava tanto a chegar que
parecia mesmo uma eternidade. Não sei o que a cuba-libre fez com meu
organismo, mas até hoje quando vejo uma garrafa de rum os dedos do
meu pé encolhem.
Tentava-se
de tudo para evitar a ressaca. Eu preferia um Alka-Seltzer e duas
aspirinas antes de dormir. Mas no estado em que chegava nem sempre
conseguia completar a operação. Às vezes dissolvia as aspirinas
num copo de água, engolia o Alka-Seltzer e ia borbulhando para a
cama, quando encontrava a cama. Mas os métodos variavam.
Por
exemplo:
Um
cálice de azeite antes de começar a beber – O estômago se
revoltava, você ficava doente e desistia de beber.
Tomar
um copo de água entre cada copo de bebida – O difícil era manter
a regularidade. A certa altura, você começava a misturar a água
com a bebida, e em proporções cada vez menores. Depois, passava a
pedir um copo de outra bebida entre cada copo de bebida.
Suco
de tomate, limão, molho inglês, sal e pimenta – Para ser tomado
no dia seguinte, de jejum. Adicionando vodca ficava um bloody-mary,
mas isto era para mais tarde um pouco.
Sumo
de uma batata, sementes de girassol e folhas de gelatina verde
dissolvidas em querosene – Misturava-se tudo num prato pirex
forrado com velhos cartões do sabonete Eucalol. Embebia-se um
algodão na testa e deitava-se com os pés na direção da ilha de
Páscoa. Ficava-se imóvel durante três dias, no fim dos quais o
tempo já teria curado a ressaca de qualquer maneira.
Uma
cerveja bem gelada na hora de acordar – Por alguma razão o método
mais popular.
Canja
– Acreditava-se que uma boa canja de galinha de madrugada
resolveria qualquer problema. Era preciso especificar que a canja era
para tomar. No entanto, muitos mergulhavam o rosto no prato e tinham
de ser socorridos às pressas antes do afogamento.
Minha
experiência maior era com a cuba-libre, mas conheço outros tipos de
ressaca, pelo menos de ouvir falar. Você sabia que o uísque escocês
que tomara na noite anterior era paraguaio quando acordava se
sentindo como uma harpa guarani. Quando a bebedeira com uísque
falsificado era muito grande, você acordava se sentindo como uma
harpa guarani e no depósito de instrumentos da boate Catito’s em
Assunção.
A
pior ressaca era de gim.
Na
manhã seguinte, você não conseguia abrir os dois olhos ao mesmo
tempo. Abria um e quando abria o outro, o primeiro se fechava. Ficava
com o ouvido tão aguçado que ouvia até os sinos da catedral de São
Pedro, em Roma.
Ressaca
de martini doce: você ia se levantar da cama e escorria para o chão
como óleo. Pior é que você chamava a sua mãe, ela entrava
correndo no quarto, escorregava em você e deslocava a bacia.
Ressaca
de vinho. Pior era a sede. Você se arrastava até a cozinha, tentava
alcançar a garrafa de água e puxava todo o conteúdo da geladeira
em cima de você. Era descoberto na manhã seguinte imobilizado por
hortigranjeiros e laticínios e mastigando um chuchu para alcançar a
umidade. Era deserdado na hora.
Ressaca
de cachaça. Você acordava sem saber como, de pé num canto do
quarto. Levava meia hora para chegar até a cama porque se esquecera
como se caminhava: era pé ante pé ou mão ante mão? Quando
conseguia se deitar, tinha a sensação que deixara as duas orelhas e
uma clavícula no canto.
Olhava
para cima e via que aquela mancha com uma forma vagamente humana no
teto finalmente se definira. Era o Peter Pan e estava piscando para
você.
Ressaca
de licor de ovos. Um dos poucos casos em que a lei brasileira permite
a eutanásia.
Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.
Ressaca de conhaque. Você acordava lúcido. Tinha, de repente, resposta para todos os enigmas do universo. A chave de tudo estava no seu cérebro. Devia ser por isso que aqueles homenzinhos estavam tentando arrombar a sua caixa craniana. Você sabia que era alucinação, mas por via das dúvidas, quando ouvia falar em dinamite, saltava da cama ligeiro.
Hoje
não existe mais isto. As pessoas bebem, bebem e não acontece nada.
No dia seguinte estão saudáveis, bem-dispostas e fazem até piadas
a respeito.
De
vez em quando alguns dos nossos se encontram e se saúdam em
silêncio. Somos como veteranos de velhas guerras lembrando os
companheiros caídos e o nosso heroísmo anônimo.
Estivemos
no inferno e voltamos, inteiros.
Um
brinde.
E
um Engov.
Luís
Fernando Veríssimo, in O suicida e o computador
Obrigado por compartilhar o texto... rendeu muitas risadas... as únicas em dias...
ResponderExcluirAgradeço, PV. E bem vindo ao blog.
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