domingo, 22 de março de 2015

Interesses

Recém-chegado ao seu albergue, Cândido foi acometido por uma leve doença causada pela fadiga. Como trazia no dedo um enorme diamante, e como haviam percebido em sua bagagem um pequeno cofre prodigiosamente pesado, teve no mesmo instante a seu lado dois médicos que não mandara chamar, alguns amigos íntimos que não o deixaram, e duas devotas que lhe esquentavam os caldos. Martinho dizia: ‘Lembro-me de também ter adoecido em Paris na minha primeira viagem; eu era muito pobre, por isso não tive amigos, nem devotas, nem médicos, e sarei.’
Entretanto, à força de medicamentos e sangrias, a doença de Cândido se agravou. Um padre assistente do bairro veio com toda a brandura pedir-lhe uma letra pagável ao portador no outro mundo; Cândido não quis saber. As devotas garantiram-lhe que era uma moeda nova. Cândido respondeu que não era um homem na moda. Martinho quis atirar o padre pela janela. O clérigo julgou que não enterrariam Cândido (em solo sagrado). Martinho jurou que enterraria o clérigo se ele continuasse a importuná-los. A discussão acalorou-se; Martinho agarrou-o pelos ombros e escorraçou-o rudemente; isso causou grande escândalo, do qual foi lavrado um auto.
Cândido sarou-se, e durante a convalescença teve ótima companhia na ceia. Jogavam alto. Cândido ficava muito espantado de que nunca lhe viessem ases; e Martinho não se espantava.”
Voltaire, in Cândido, ou O otimismo

Nenhum comentário:

Postar um comentário