“Recém-chegado
ao seu albergue, Cândido foi acometido por uma leve doença causada
pela fadiga. Como trazia no dedo um enorme diamante, e como haviam
percebido em sua bagagem um pequeno cofre prodigiosamente pesado,
teve no mesmo instante a seu lado dois médicos que não mandara
chamar, alguns amigos íntimos que não o deixaram, e duas devotas
que lhe esquentavam os caldos. Martinho dizia: ‘Lembro-me de também
ter adoecido em Paris na minha primeira viagem; eu era muito pobre,
por isso não tive amigos, nem devotas, nem médicos, e sarei.’
Entretanto,
à força de medicamentos e sangrias, a doença de Cândido se
agravou. Um padre assistente do bairro veio com toda a brandura
pedir-lhe uma letra pagável ao portador no outro mundo; Cândido não
quis saber. As devotas garantiram-lhe que era uma moeda nova. Cândido
respondeu que não era um homem na moda. Martinho quis atirar o padre
pela janela. O clérigo julgou que não enterrariam Cândido (em solo
sagrado). Martinho jurou que enterraria o clérigo se ele continuasse
a importuná-los. A discussão acalorou-se; Martinho agarrou-o pelos
ombros e escorraçou-o rudemente; isso causou grande escândalo, do
qual foi lavrado um auto.
Cândido
sarou-se, e durante a convalescença teve ótima companhia na ceia.
Jogavam alto. Cândido ficava muito espantado de que nunca lhe
viessem ases; e Martinho não se espantava.”
Voltaire,
in Cândido, ou O
otimismo
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