segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O juízo final

Chegou o miserável milionário no céu e, impacientemente, esperou a sua vez de ser julgado. Introduziram-no numa sala, noutra sala, noutra sala, até que se viu frente a uma luz ofuscante, na qual pouco a pouco foi distinguindo a figura santa do pai dos Homens. Em voz tonitroante este, tendo à direita, Pedro, e, à esquerda, uma figura que ele não conhecia, julgou sumariamente dois outros pecadores que estavam à sua frente. E, afinal, dirigiu-se a ele:
- Que fez você de bom na sua vida?
- Bem, eu nasci, cresci, amei, casei, tive filhos, vivi.
- Ora - disse o Senhor - isso são atos sociais e biológicos a que você estava destinado. Quero saber que bondade específica e determinada você teve para com o seu semelhante.
- Bem - disse o milionário - eu criei indústrias, comprei fazendas, dei emprego a muita gente, melhorei as condições sociais de muita gente.
- Não, isso não serve - disse o Todo-Poderoso - essas ações estavam implícitas ao ato de você enriquecer. Você as praticou porque precisava viver melhor. Não foram intrinsecamente boas ações, desprendidas, não servem.
O milionário escarafunchou o cérebro e não encontrou nada. Em verdade, passara uma vida egoísta, pensando apenas em si mesmo. Nunca o preocupara seu semelhante, nunca olhara para o ser humano a seu lado senão como uma fonte de lucro para as suas indústrias. Mas, de repente, lembrou-se das obras de filantropia.
- Ah - disse, puxando uma caderneta - aqui está. Uma vez dei cem cruzeiros para uma velhinha da Casa dos Artistas, outra vez contribuí com duzentos cruzeiros para o Hospital dos Alienados e outra vez contribuí com quinhentos cruzeiros para a Fundação das Operárias de Jesus.
- Só? - perguntou Deus.
- Só - disse o milionário contrafeito.
- Josué! - gritou o Todo-Poderoso -, dê oitocentos cruzeiros ao cavalheiro aqui e que vá para o Inferno.
Moral: Amor com amor se paga e o dinheiro com dinheiro também.


Millôr Fernandes, in Pif-paf

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