Abacate: Fiz certa vez para a
minha série de poeminhas infantis, um sexteto sobre essa fruta de que gosto
muito e que pertence, segundo me ensina o verbete de mestre Aurélio, à família
das Lauráceas - o que não é dizer pouco. O poeminha é como segue, e faz grande
sucesso entre crianças de mentalidade cropófila e adultos de mentalidade de
criança, como é o caso de meu amigo e compadre Chico Buarque:
A
gente pega o abacate
Bate bem no batedor
Depois do bate-que-bate
Que é que parece? - Cocô.
Ô abacate biruta:
Tem mais caroço que fruta!
Bate bem no batedor
Depois do bate-que-bate
Que é que parece? - Cocô.
Ô abacate biruta:
Tem mais caroço que fruta!
Mas eis que, de repente,
surgem-me, no ato de escrever, confusas, dolorosas recordações ligadas a essa
palavra. Vejo-me menino, na casa de meus avós paternos, à rua General Severiano
em Botafogo, debruçado à grande mesa da sala de jantar, apreciando meu avô
comer com delícia o seu abacate no ritual gastronômico cotidiano. Era toda uma
cerimônia, as refeições de meu avô Moraes. Brando déspota baiano, cheio de
bossa e filáucia, colocava-se ele à cabeceira, o guardanapo atacado ao pescoço,
à moda antiga, e sem dizer abacate atacava os próprios, depois de cortá-los em
duas metades, que enchia de açúcar até às bordas. E era de vê-lo traçando-os a colheradas,
devagar e sempre, até a última epiderme. Depois, limpava, com um rápido gesto
de ida e volta, a boca e o bigode branquinho, suspirava fundo e partia para o
seu quarto de leitura, onde ficava o lindo oratório de minha avó. E ali se
deixava ele no embalo da velha cadeira de balanço, de espaldar de palhinha, a
ler pela milésima vez os folhetins de Michel Zevaco, de que eu era também
leitor constante. Quantos títulos não lembro... Os Pardaillan, Buridan, Os
amantes de Veneza, A torre de Nestle...
- Ecco la saeta!
- La paro!
O italiano entrava nos duelos
como cor local. Pardaillan aparava o que viesse, o herói de todo caráter,
enquanto, pouco a pouco, o velho avô se ia desintegrando em sono. Eu chegava pé
ante pé para espiá-lo de mais perto, como quem examinava uma múmia de museu.
Que fenômeno, um velho! Mas não qualquer velho: um ancião espetacular, como meu
avô Moraes, o rosto cortado em mil rugas descendentes e as pálpebras inferiores
começando a cair; um velho com o dorso das mãos enferrujado e a pele do pescoço
pendente, já meio solta da carne.
Meu avô Antero Pereira da Silva
Moraes... Bendita a palavra que desencadeou tanta saudade e o trouxe de volta
tão nítido como o vejo agora... a arrastar os pés ao longo do corredor, sem
tempo e sem rumo - um macróbio total. Circundava-o sempre um aroma de sândalo
ou alfazema, por isso que minha avó nunca se esquecia de espalhar, em seus
gavetões, sachets perfumosos que lhe impregnavam a roupa. E sua vida era essa:
vagar pela casa, o único território em que podia velejar com segurança.
Nós, meninos, tínhamos cuidado
para não esbarrar nele, em nossas correrias, de vez que o corredor era o
desaguadouro natural de nosso tropel faminto, quando nos chamavam para a mesa.
O velho, ao sentir que algum pé-de-vento o cruzava, dava uma leve guinada de
proa, fazia uma lenta meia-volta parada e seguia mecanicamente em sua esteira,
agarrado por cabos imponderáveis àquela vida infantil que passava à toa. Tudo
nele parecia realizar-se num mundo acústico, onde os sons chegassem como num
aparelho de surdo subitamente conectado. Uma porta batia, alguém berrava por
alguém, o cachorro ladrava - e desencadeava-se em seus tímpanos uma tempestade
que o fazia retornar ao mundo dos vivos. Sua máscara frouxa assumia um ar
dramático e ele, transtornado, perguntava, numa voz pânica e trêmula de
náufrago pedindo socorro:
- Que foi?
Às vezes parava, incerto sobre o
rumo a tomar, desligado de tudo. Seu rosto ensimesmava-se, num desesperado esforço
de ver, como se estivesse mirando um poço sem fundo, e depois exprimia espanto,
pois o medo do desconhecido parecia de repente tomá-lo. Girava os olhos, então,
dentro da cratera rubra das pálpebras soltas, como a buscar onde se ater.
Ficava assim, a mover devagar a cabeça para um lado e outro - um bicho velho
diante de sua própria morte.
Depois, refeito o vazio, ele
reunia novas forças e saía em seu passinho miúdo e arrastado, de volta à
cadeira de balanço como um velho barco ao ancoradouro. Ali, com um máximo de
cautela para não cair, sentava-se bem devagarinho, num exercício cujo resultado
parecia deixá-lo feliz, pelos esgares que fazia. Puxava a manta sobre os
joelhos e, pouco a pouco, deixava pender a cabeça. Que pensamentos poderiam então
tomá-lo? Talvez lhe chegassem, em fragmentos rútilos, as risadas claras das
mulheres que teve - e muitas foram, ao que parece...; talvez os rufos e as
clarinadas das paradas militares a que tanto gostava de assistir.
E era doce, nessas horas, depois que o sono vinha,
ver chegar toda branquinha, toda curva, a sua eterna velhinha que se deixava
estar um pouco junto ao umbral, queimando a sua cera antiga numa chama de amor
quase apagando. E depois de mirá-lo algum tempo, ela ia, minha santa avozinha, e
se ajoelhava ao pé do oratório, onde ficava a tatalar preces ausentes, os olhos
postos com infinita devoção no Menino Deus, em sua manjedoura, ou em Nossa
Senhora da Conceição, sua xará celeste, perdida na visão de beatitudes que não
conheceu em vida - pois, segundo consta, em matéria de mulher, meu avô não
deixou passar ninguém. Mas ela o amava, o velho sacripanta, de um amor tão puro
de esposa, que eu posso vê-la neste instante, mesmo mergulhada na visão do Ser
Egrégio, a cuja mão direita deve sentar-se agora, linda e modesta como sempre,
tendo ao lado seu velhinho todo elegante em seu paletó de alpaca - e cuja
entrada no Céu só obteve pelo muito que rezou e por todo o bem que fez em vida.
Pois o velho não era de brincadeira.
Vinicius
de Moraes, in Jornal do Brasil, 31/12/1969
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