Grandalhão,
voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria ambiciosa,
quer enfeitar a casa de brincos e tetéias. Ele ganha pouco, mal pode com os
gastos mínimos. Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente
de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a
roupinha dos meninos, costura as camisas do marido. Inconformada porém da
sorte, humilhando o homem na presença da sogra.
Para não
discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe
agarra a ponta do paletó:
— Não vá,
pai. Por favor, paizinho.
Comove-se
de ser chamado Paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um
grito castanho de ódio.
— O
paizinho vai dar uma volta.
Tão
grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável,
atropelando as palavras, é o palhaço do botequim. E, pior que tudo, sente-se
desgraçado, quer o conchego do corpo gostoso da mulher.
Mais
discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito
pintada e gasta pelos trabalhos caseiros. Desespero de João e escândalo das
famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho
as mil marchinhas de carnaval. Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelha
e encurtar a saia — no braço o riso de pulseiras baratas.
Com uma
vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouro:
— Sou
artista exclusiva — ufana-se, com sotaque pernóstico. — A féria é gorda!
Aos
colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. João escapole pelos fundos,
envergonhado da barba por fazer. Volta bêbado e Maria tranca a porta do quarto,
obrigado a dormir no sofá da sala. Noite de inverno, o filho mais velho, ao
escutá-lo gemer, traz um cobertor:
— Durma,
paizinho.
A cada
sucesso de Maria — o quinto prêmio da marchinha, o retrato no jornal, a carta
com pedido de autógrafo:
— Ela
ainda recebe uma vaia — é o comentário de João. - Com uma boa vaia ela aprende!
Ó não —
essa aí quem é de cabelo oxigenado? Acompanhada a casa, horas mortas, pelo
parceiro de vida artística. Ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências
ocultas. Demora-se aos beijos na porta e as mães proíbem as crianças de brincar
com os dois meninos. João sabe que é o fim — dona casada que tinge o cabelo não
é séria. Vai dormir no puxado da lenha, encolhido na enxerga imunda, a garrafa
na mão.
Dois dias
fechado (assusta-lhe a própria força e jamais bate nos filhos), urra palavrão e
desfere murro na parede. Maria faz as malas e, sem que os pequenos se despeçam
de João, muda-se para casa dos pais.
Lá deixa
os meninos e amiga-se com um pianista de clube noturno. Mais uma bailarina, que
obriga os clientes a beber. O pianista, vicioso e tísico, toma-lhe o dinheiro
e, se a féria não é gorda, ainda apanha.
Cansada
de surra, volta à casa dos pais. Então a velha sai em busca de João e sugere as
pazes.
— Ela que
fique onde está. Não quero Maria, nem pintada de prata.
Despedido
da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. Ao vestir o paletó, da manga
surge uma cobra e, aos berros, lança-o no fogo. Aranha cabeluda morde-lhe a
nuca; inútil esmagá-la com o sapato, de uma nascem duas e três — enrodilha-se
medroso a um canto e esconde nos joelhos a cabeça.
Domingo
recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertem-se no Passeio Público
a espiar os macaquinhos. O pai compra amendoim e pipoca, que os três mordiscam
deliciados. Afasta-se de mansinho e, atrás de uma árvore, empina a garrafa
saliente no bolso traseiro da calça — as mãos cessam de tremer. Os meninos
desviam os olhos: sapato furado, calça rasgada, paletó sem botão. Alisando a
mão gigantesca:
— Não,
paizinho. Não beba mais, pai.
Lágrimas
correm pelo narigão de cogumelo encarnado. Despede-se com sorriso sem dentes.
Na esquina gorgoleja a cachaça até a última gota.
Em
delírio na sarjeta, recolhido três vezes ao hospício. A crise medonha da
desintoxicação, solto quinze dias mais tarde. Mal cruza o portão, entra no
primeiro boteco.
Maria cai
nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão
horrorosa, consola-se no tanque de roupa. Nem o amante nem os velhos querem
saber dos piás, internados no asilo de órfãos.
Cada um
aprende seu ofício e, no último domingo do mês, com permissão da freira, vão
bem penteadinhos à casa do pai. Ainda deitado, curte a ressaca; com alguns
goles sente-se melhor. Os pequenos varrem a casa, acendem o fogo, olhinho
irritado pela fumaça. No almoço apresentam café com pão e salame rosa. Sentado
na cama, o pai contenta-se em vê-los comer. Sorri em paz, um deles enxuga-lhe o
suor frio da testa. Sem coragem de abandoná-lo, os filhos a seu lado durante a
noite: fala bobagem, treme da cabeça aos pés, bolhas de escuma espirram no
canto da boca.
Os
meninos adormecem, ouvindo o ronco feio do afogado. O maior acorda no meio da
noite, vai espiar o pai em sossego, olho branco. Fala com ele, não se mexe. Tem
medo e chama o irmão:
— O
paizinho morreu.
Sem
chorar, encolhidos na beira da cama, à escuta dos pardais da manhã.
Dalton Trevisan, in 20 contos menores
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