“(...)
aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica
obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa
deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas
com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e
consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça.
O
que costumam furtar nestes ofícios e governos os ladrões de que falamos ou é a
fazenda real ou a dos particulares; e uma outra têm obrigação de restituir
depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis; ou
seja, porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente
(que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos. E aqui se deve
advertir uma notável diferença (em que se não repara) entre a fazenda dos reis
a e dos particulares. Os particulares, se lhes roubam a sua fazenda, não só não
são obrigados à restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem
com paciência; e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito
pior condição nesta parte: porque, depois de roubados têm eles obrigação de
restituir a própria fazenda roubada, nem a podem demitir, ou perdoar aos que
roubaram. A razão da diferença é, porque a fazenda do particular é sua; a do
rei não é sua, senão da república. E assim como o depositário, ou tutor, não
pode deixar alienar a fazenda que lhe está encomendada e teria obrigação de restituí-la,
assim tem a mesma obrigação o rei que é tutor e como depositário dos bens e
erário da república; a qual seria obrigado a gravar com novos tributos, se
deixasse alienar ou perder as suas rendas ordinárias.
Rei dos reis e Senhor dos senhores, que
morreste entre dois ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão; e o primeiro
a quem prometeste o paraíso foi outro ladrão; para que os ladrões e os reis se
salvem, ensinai com vosso exemplo e inspirai com vossa graça a todos os reis,
que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de
tal maneira impeçam os furtos futuros e façam restituir os passados, que em
lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles
consigo os ladrões ao paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in paradiso.”
Padre
Antônio Vieira, in Sermão do bom ladrão
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