De uns tempos pra cá, tenho acordado no susto.
Sempre com a estranha sensação de estar atrasado para um compromisso que não
existe. Sempre com aquela angústia desnecessária de estar devendo ao mundo um
poema que nunca será escrito. Olho na agenda, nada marcado. Coloco meus óculos
e confirmo nitidamente que não tenho realmente nada agendado para os próximos
dias, quiçá meses. Devo estar atrasado comigo, com o meu passado. Alguma
saudade que eu deixei para trás está cobrando minha companhia, como se fosse um
chope ou uma dúzia de bolinhos de bacalhau que eu deixei em alguma conta
pendurada no balcão do meu bar predileto.
Regra número 1: a saudade sempre volta para apertar
o peito e acertar as contas.
Ela se infiltra nos meus sonhos, pelas janelas
fechadas dos nossos olhos, e fica ali, quietinha, até se apoderar com força
descomunal das nossas fraquezas. Acho que é assim que nascem as nossas
lágrimas. Lágrima é a nossa saudade em estado líquido.
Meu despertador é testemunha sonora da minha
vontade de continuar sonhando. Só mais um pouquinho, por favor. “NÃO!” – temos
tanta intimidade que parece que ele me dá esporro em bom e velho português. E
toca mais alto e mais alto e mais alto e mais alto… Não tem mais jeito: preciso
levantar.
Uma secretária imaginária parece ter programado o
meu dia:
6h: abrir os olhos
6h40: acordar
7h30: sair da cama
9h: tomar café
9h01: despertar.
Sim! Acho que o primeiro sinal de que o tempo
passou é quando a gente descobre que existe diferença entre abrir os olhos,
acordar, sair da cama e despertar. Quando menino, eu já abria os olhos com o
coração a mil por hora, elétrico, chutando uma bola imaginária. Tadinha da
luminária!
10h: responder e-mails de ontem
12h: reunião com o meu organismo para saber se
estou com fome
13h: pagar a conta do almoço
14h35: ligar para o meu pai. Será que a voz dele
mudou nesses quatro anos e meio? E-mail não tem timbre…
15h: desenhar guardanapos
16h: lembrar que esqueci que a agência bancária
acabou de fechar e eu não paguei meu plano de saúde
17h50: caminhar pela orla
19h: responder os e-mails de hoje
21h: pensar em sobreviver da minha arte
23h: continuar pensando no que eu estava pensando
às 21h
23h59: deitar
1:15: pedir encarecidamente para pararem de
comentar “segue de volta” e “troco likes”
2h: iniciar o processo de sono e se preparar para
sonhar
Que tédio! Nossos sonhos não podem virar rotina, um
programa sem audiência embutido na grade horária da nossa realidade. Nossos
sonhos não podem ser uma resposta automática do nosso corpo quando a luz se
apaga, como estender as mãos para cumprimentar ou retrair os pés para se
despedir. Onde aperto o botão, querida secretária imaginária? Preciso atualizar
o meu sistema operacional.
6h: abrir os olhos…
Talvez seja só uma conclusão saudosa e um menino que
se esqueceu de despertar, talvez seja só uma afirmação ranzinza de um adulto
que não se lembrou dos seus sonhos, mas essa saudade que volta para apertar o
nosso peito e acertar as nossas contas é a nossa infância buscando
compatibilidade com a nossa realidade. Por que carrega essa amargura, Pedro?
Por que você deixou de lado a ternura, Antônio? Onde está essa criança,
Gabriel?
Regra número
2: a poesia sempre nasce para que essa saudade não passe.
*PEDRO GABRIEL nasceu em N’Djamena, capital do
Chade, em 1984. Filho de pai suíço e mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12
anos — e até os 13 não formulava uma frase completa em português. A partir da
dificuldade na adaptação à língua portuguesa, que lhe exigiu muita observação
tanto dos sons quanto da grafia das palavras, Pedro desenvolveu talento e
sensibilidade raros para brincar com as letras. É formado em publicidade e
propaganda pela ESPM-RJ e criador de “Eu me chamo Antônio”, perfil do Instagram
e página do Facebook que deram origem ao livro Eu me chamo Antônio, lançado
pela Intrínseca.
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