Da
cidade, correndo à superfície do rio, chagavam os sons graves de um sino de
bronze, oferecido ao mosteiro por um amador de carrilhões de igreja.
O
cocheiro, que estava muito próximo de Nekliudov, e todos os carroceiros, foram
tirando os bonés, cada um por sua vez, e persignaram-se. Um velhote de estatura
baixa, andrajoso, em que Nekliudov não reparara, em princípio, por estar mais
perto da borda que os outros, foi o único que não se persignou, mas, levantando
a cabeça. Olhou para ele. Estava vestido com uma longa peliça, de calças de
pano e de sapatos cambados e remendados. Trazia um saco pendurado nas costas e
na cabeça um boné alto de pele muito surrado.
-
Então tu, velho, não te benzes? – perguntou o cocheiro de Nekliudov, depois de
ter posto novamente o boné. – És capaz de nem ser batizado?
-
Benzer-me? Em nome de quem? – replicou o velho com um ar decidido e provocante,
salientando cada uma das sílabas.
-
De quem? De Deus, com certeza! – respondeu o cocheiro, ironicamente.
-
Pois bem, mostra-mo então! Onde está o teu Deus?
Havia
na expressão do velho algo de tão grave e tão duro que o cocheiro, sentindo que
estava em presença de uma natureza forte, ficou um pouco desconcertado. Todavia,
dissimulou a sua perturbação e, esforçando-se por ter a última palavra, para
não se sentir diminuído perante os outros, respondeu com vivacidade.
-
Onde? Toda a gente sabe: no céu!
-
Já foste lá?
-
Tenha lá ido ou não, toda gente sabe que é preciso rezar a Deus.
-
Nunca ninguém viu Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o deu
a conhecer – continuou o velho com a mesma vivacidade, franzindo o sobrolho.
-
Já estou a ver que tu és um pagão, um descrente. Adoras o vazio – disse o
cocheiro estalando o chicote na cintura e ajustando os arreios do cavalo.
Ouviu-se
uma risada.
-
E qual é a tua religião, avô? – perguntou um homem de certa idade que estava
próximo da carroça, na extremidade da barcaça.
-
Não tenho religião porque não creio em ninguém, a não ser em mim próprio -assim
respondeu com rapidez e firmeza.
-
Mas como é que se pode crer em si próprio? – perguntou Nekliudov, por sua vez. –
Podemos nos enganar.
-
Nunca! – replicou o velho, com um movimento de cabeça.
-
Então, porque é que existem tantas religiões diversas?
-
Elas são diversas porque os homens creem nos outros e não em si próprios. Também
eu tive fé nos homens e errei na taiga. Perdi-me de tal forma que já não
esperava sair de lá. E os velhos crentes, e os novos crentes, e os Subootniki,
e os Klysty, e os Poptsy, e os Bezpotovtsy, e os Austriacki, e os Molokanes, e
os Skoptsy, todos exaltam a sua religião como se fossem a única. E todos se
dispersaram como uma matilha de cachorros cegos. Inúmeras são as crenças, mas o
Espírito é apenas um. Ele está em mim, em ti, em nós. Portanto, que cada um creia
no seu próprio espírito e então estaremos todos unidos! Que cada um volte a ser
ele próprio e todos estarão com ele.
O
velho falava muito alto e olhava sem cessar em seu redor como que para ter o
maior número de ouvintes possível.
-
Há muito que tem essa fé? – perguntou Nekliudov.
-
Eu? Há muito. Já vão fazer vinte e três anos que eles me perseguem.
-
Como! Perseguem-te?
-
Sim, tal como perseguiram Cristo, perseguem-me a mim. Perndem-me e levam-me
perante os tribunais e perante os popes – os escribas e os feriseus. Encerraram-me
numa casa de doidos. Mas nada podem contra mim, porque eu sou livre. ‘Como é
que te chamam?’, perguntam eles. Imaginam que eu voudizer-lhes um título
qualquer. Abjurei tudo: nome, domicílio, pátria. Nada tenho. Tornei-me eu
próprio. Como é que me chamo? Um homem! –
‘E que idade tens?’ – ‘Não contei.’ É o que lhes respondo. E, aliás, não se
pode contar, visto que sempre existi e sempre existirei. – ‘E quem são o teu
pai e a tua mãe?’, perguntam eles. ‘Não tenho pai nem mãe, a não ser Deus e a
Terra. O primeiro é meu pai, a outra é minha mãe.’ – ‘E o czar, reconhece-o?’ -‘Porque não o hei de reconhece-lo? Ele é o
seu czar e eu sou o meu czar.’ – ‘Oh! É impossível discutir contigo!’ – ‘Não te
peço que discutas comigo’, respondo eu. E é assim que eles me atormentam.
-
E para onde é que vai agora? – perguntou Nekliudov.
-
Para onde Deus me conduzir. Trabalho e, quando não há trabalho, mendigo –
acrescentou o velho, passeando sobre os seus ouvintes um olhar triunfante. A barcaça
aproximava-se da margem.
Acostou.
Nekliudov puxou pelo porta-moedas e ofereceu dinheiro ao velho, que recusou.
-
Não aceito dinheiro. Só aceito pão.
-
Então, adeus e desculpe-me!
-
Nada há a perdoar. Não me ofendeste. Aliás, não é possível ofenderem-me – disse
o velho voltando a por o saco às costas.
Entretanto
haviam feito sair a tróica e atrelaram-na.
- Porque se ralou a falar-lhe? – perguntou
o cocheiro a Nekliudov, quando este, depois de ter dado uma gorjeta aos
robustos barqueiros, subiu para o carro. – Um vagabundo! Um homem sem préstimo!
Leon
Tolstoi, in Ressurreição
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