quinta-feira, 17 de julho de 2014

Vinho de missa


Era domingo e o navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a missa de bordo.
- Vamos à missa?  convidou Ovalle.
O passageiro a seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:
- Missa, eu? Deus me livre de missa.
- Não entendo - tornou Ovalle, intrigado:
- O senhor pede justamente a Deus que o livre da missa?
- No meu tempo de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio no colégio interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre -- isso explica tudo, o senhor não acha?
Ele achou que não explicava nada e pediu ao homem que contasse.
- Pois olha, vou lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro, para fazer a barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me seduz com a ideia de furtar o vinho de missa, que era guardado numa adega. Me ensinou um jeito de entrar na adega - e um dia eu fiz uma incursão ao tonel de vinho. Mas fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a travessura e no dia seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o culpado a se denunciar. Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão horrenda culpa mereceria danação eterna. Está visto que não me denunciei: busquei um confessor, tendo o cuidado de escolher um padre que gozava entre nós da fama de ser mais camarada: "Padre, como é que eu saio desta? Eu pequei, fui eu que bebi o vinho. Mas se deixar de comungar, o padre-diretor descobre tudo, vou ser castigado." Ele então me tranquilizou, invocando o segredo confessional, me absolveu e pude receber a comunhão. Pois muito bem: no mesmo dia todo mundo sabia que tinha sido eu e eu era suspenso do colégio. O homem respirou fundo e acrescentou, irritado:
- Como é que o senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?
Ovalle ouvia calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro, comentou:
- O senhor, certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar ao diretor.
- Isso mesmo. Foi o que aconteceu.
- O vinho era bom?
- Como?
- Pergunto se o senhor achou o vinho bom.
O homem sorriu, intrigado:
- Creio que sim. Tanto tempo, não me lembro mais... Mas devia ser: vinho de missa!
Então Ovalle se voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:
- E o senhor, depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos acreditando nessa asneira? O homem o olhava, boquiaberto:
- Asneira? Que asneira?
- Será possível que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!
- O barbeiro? - balbuciou o outro:
- É verdade... O barbeiro! Como é que na época não me ocorreu...
- Vamos para a missa - ordenou Ovalle, tomando-o pelo braço.
Fernando Sabino, in A mulher do vizinho

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