“Às vezes,
tarde da noite, homens batiam à porta da farmácia ou da nossa residência,
trazendo nos braços, ferido e sangrando, algumas vítimas da brutalidade dos
capangas do chefe político local ou alguém que fora "lastimado" numa
briga na Capoeira ou no Barro Preto. Lembro-me que certa noite - eu teria uns quatorze
anos, quando muito - encarregaram-me de segurar uma lâmpada elétrica à
cabeceira da mesa de operações, enquanto um médico fazia os primeiros curativos
num pobre-diabo que soldados da Polícia Municipal haviam "carneado".
Eu terminara de jantar e o que vi no relance inicial me deixou de estômago
embrulhado. A primeira coisa que me chamou atenção foi o polegar decepado, que
se mantinha pendurado à mão esquerda da vítima apenas por um tendão. O
ferimento mais horrível de todos era o talho, provavelmente de navalha, que
rasgara uma das faces do caboclo duma comissura dos lábios até a orelha.
Tinha-se a impressão de que o homem estava sorrindo de tudo aquilo. Seus olhos
conservaram-se abertos e de sua boca não saía o menor gemido. Um golpe,
provavelmente de adaga, lhe havia descolado parte do couro cabeludo. Pelo talho
do ventre escapava-se a madrepérola viscosa dos intestinos. Foi essa a primeira
vez na vida que senti de perto o cheiro de sangue e de carne humana dilacerada.
Apesar do horror e da náusea, continuei firme onde estava, talvez pensando
assim: se esse caboclo pode aguentar tudo isso sem gemer, por que não hei de
poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar o doutor a costurar esses talhos
e salvar essa vida? Por incrível que pareça, o homem sobreviveu.
Desde
que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de
que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças
como a nossa, é acender a sua lâmpada, trazer luz sobre a realidade de seu
mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos
assassinos e aos tiramos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do
horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou,
em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não
desertamos nosso posto.”
Érico
Veríssimo, in Solo de clarineta: memórias
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