Vivemos a civilização do automóvel, mas atrás do volante de
um carro o homem se comporta como se ainda estivesse nas cavernas. Antes da
roda. Luta com o seu semelhante pelo espaço na rua como se fosse o último
mamute. Usando as mesmas táticas de intimidação, apenas buzinando em vez
de rosnar ou rosnando em vez de morder.
O trânsito em qualquer lugar da cidade do mundo é uma
metáfora para a vida competitiva que a gente leva, cada um dentro do seu
próprio pequeno mundo de metal tentando levar vantagem sobre o outro, ou
pelo menos tentando não se deixar intimidar. E provando que não há nada
menos civilizado que a civilização.
Mas há uma exceção. Uma pequena clareira de solidariedade
na jângal. É a porta aberta. Quando o carro ao seu lado emparelha com o
seu e alguém põe a cabeça para fora, você se prepara para o pior. Prepara a
resposta. 'É a sua!' Mas você pode ter uma surpresa.
- Porta aberta!
- Porta aberta!
- O quê?
Você custa a acreditar que nem você nem ninguém da sua
família está sendo xingado. Mas não, o inimigo está sinceramente preocupado com
a possibilidade da porta se abrir e você cair do carro. A porta aberta
determina uma espécie de trégua tácita. Todos a apontam. Vão atrás, buzinando
freneticamente, se por acaso você não ouviu o primeiro aviso. 'Olha a porta aberta!'
É como um código de honra, um intervalo nas hostilidades. Se a porta se abrir e
você cair mesmo na rua, aí passam por cima. Mas avisaram.
Quer dizer, ainda não
voltamos ao estado animal.
Luís Fernando Veríssimo, in O
suicida e o computador
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