quinta-feira, 6 de março de 2014

Para ler com fones de ouvido


Não tenho visto por aí livros que contenham mais de um gênero literário. Houve um tempo em que era mais comum haver edições com contos e crônicas e, às vezes, até poemas junto. Lembro de um de que gostava muito, o Geração Grapete, da Suzana Kilpp. Outro legal com textos variados era o Aquele Um, do Luciano Alabarse. Muitos vinham também com fotografias e desenhos. Achei em Buenos Aires uma edição bonita e com um preço ótimo de um livro do Julio Cortázar. É o Salvo el crepúsculo.
 Nele, Cortázar colocou suas crônicas e seus poemas. Em um dos textos, o autor cita um amigo que diz não gostar de livros que contenham textos de prosa alternando com poesia. Segundo o amigo, por uma questão de ritmo de leitura. A cabeça entra num ritmo e, em seguida, tem que mudar de código. Cortázar diz que não se importa com isso. Tanto que publicou um assim. Há uma crônica genial chamada Para escuchar com audífonos. Cortázar fala da curiosa fração de segundo que precede ao primeiro som de um disco escutado com fones de ouvido. Tratava-se de audição dos discos de vinil. Um pedacinho do som que viria a seguir soa antes. Parte do que viria depois, vinha antes. Não sei você que me lê já passou por essa experiência. Eu já. E a crônica percorre esse mistério, relatando as explicações de um técnico em eletrônica, mescladas às indagações filosóficas e criativas do autor. Um exemplo de um trecho da crônica: “el poema es en sí mismo um audífono del verbo”. Antes disso, um poema chamado Crónica para César: “y tu mismo dirás tu nombre como si te miraras al espejo/porque ya no distinguirás entre los adoradores y el ídolo”. A poesia trata do imperador romano Júlio César.Tem poema do Haroldo de Campos, trecho de Clarice Lispector, traduções, enfim, um livro tão livre e inteligente como o são seus livros de contos, por exemplo. Tive uma certa dificuldade durante um tempo para memorizar o título do livro. Depois que comprei, vi porque ele tem esse nome. É um verso de um haicai do Bashô, o poeta japonês do século XVII. Em português, é assim: “este caminho/que ninguém mais percorre/a não ser o crepúsculo”. Em espanhol, o último verso fica “salvo el crepúsculo”. Há um eco desse poema numa música do Arnaldo Antunes: “no caminho que ninguém caminha/alta noite já se ia (...)nenhuma pessoa sozinha ia/nenhuma pessoa vinha...”. Arnaldo leu Bashô. Intuo que foi dali que traduziu criativamente o “este caminho que ninguém mais percorre” para “no caminho que ninguém caminha”. Também encontrei haicais na reunião de poemas do Borges que achei por lá e no Inventario Tres, o terceiro volume das obras completas com a poesia do genial uruguaio Mario Benedetti. O livro de Bashô que ficou para a história, Sendas de Oku, é um haibun, um livro de viagens. Nele, o autor relata a viagem que fez pelo Japão até os lugares citados em poemas dos poetas clássicos japoneses. Lá, ele fazia um poema seu, um haicai, que mostrava no livro. Ou seja, uma crônica de viagem em prosa convivendo perfeitamente com ótimos poemas.
Ricardo Silvestrini, in silvestrini.blogspot.com.br

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