sexta-feira, 28 de março de 2014

Agua clara con sonido


De Garcilaso dela Vega dizia-se que era el mais hermoso y gallardo de cuantos componian la Corte del emperador. Chamavam-no, sem inveja, el amado de los dioses y su elegido. Morto com a idade de Cristo (1503-1536), viveu o grande toledano uma vida de um brilho raro, distribuída entre um desterro, muitas batalhas e, nos interlúdios, lindas mulheres, entre as quais sobressai sua maior paixão, dona Isabel Freyre, dama portuguesa da Corte da imperatriz Isabel, que, aparentemente, não lhe dava o devido troco. Mas a verdade é que o poeta-cortesão ia levando, a mão nos copos da espada, um sorriso nos lábios e estrofes de Virgílio, Dante e Petrarca na ponta da língua, para amaciar corações outros que não o da bem-amada.
Era um bravo, à maneira de Villon e de Camões. Tão bem a cavalo como a pé, amigo de poetas e de santos, morreu nos braços de seu amigo, o marquês de Lombay, que a Igreja canonizaria como são Francisco de Borja, depois de, sozinho, dar início ao assalto à fortaleza de Muy, na Provença. Mas quando repousava-se das armas, empunhava, ao que se conta, a harpa com igual mestria. Formal, no sentido clássico, sem ser culterano, soube deixar fluir de sua curta mas magistral obra poética uma luminosa música verbal que o distingue entre os pioneiros do chamado Século de Ouro da poesia espanhola. E foi também um extraordinário inovador, não só com trazer para a lírica de sua pátria os elementos positivos da escola italiana, mas com enriquecê-la de criações novas, qual seja a estrofe composta de versos de cinco, sete e 11 sílabas, conhecida como estrofe-lira, por ser esta a palavra final do primeiro verso de sua famosa canção "A la flor de Gnido ":

Si de mi baja lira 
tanto pudiese el son que en un momento
aplacase la ira 
del animoso viento
y la furia del mar, y el movimiento… 

E que maior glória para Garcilaso, ver suas inovações constituírem as formas diletas de poetas espanhóis do século VI da estatura de frei Luis de León e, sobretudo, San Juan de La Cruz?
Há um verso do poeta que me encanta, na écloga dedicada ao vice-rei de Nápoles, em que são personagens seus dois filhos pastoris mais amados, Salicio e Nemeroso. Vem lá pelo meio do poema, e diz assim:

... cuando Salicio, recostado
al pié de una alta haya en la verdura, 
por donde una agua clara con sonido 
atravesaba el fresco y verde prado...

O verso a que me refiro, como já hão de ter percebido, é o terceiro do trecho aqui citado: por donde una agua clara con sonido. É inútil tentar traduzir. Água clara com som, água clara com ruído - nada terá nunca a beleza natural, a luminosidade de córrego límpido correndo fagueiro ao sol, o onomatopeísmo substantivo, sem necessidade de aliterações, do verso original de Garcilaso. São como sons puros de música.
Eu, se jamais tivesse feito um verso assim, pendurava as chuteiras.
Vinicius de Moraes, in Para viver um grande amor

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