sábado, 22 de março de 2014

A música na minha escrita

No México, enquanto escrevia Cem Anos de Solidão — entre 1965 e 1966 -, só tive dois discos que se gastaram de tanto serem ouvidos: os Prelúdios de Debussy e A hard day's night dos Beatles. Mais tarde, quando por fim tive em Barcelona quase tantos como sempre quis, pareceu-me demasiado convencional a classificação alfabética e adotei para minha comodidade privada a ordem por instrumentos: o violoncelo, que é o meu favorito, de Vivaldi a Brahms; o violino, desde Corelli até Schõnberg; o cravo e o piano, de Bach a Bartók. Até descobrir o milagre de que tudo o que soa é música, incluídos os pratos e os talheres no lava-louças, sempre que criem a ilusão de nos indicar por onde vai a vida.
A minha limitação era que não podia escrever com música porque prestava mais atenção ao que ouvia do que ao que escrevia, e ainda hoje assisto a muito poucos concertos porque sinto que na cadeira se estabelece uma espécie de intimidade um pouco impudica com vizinhos estranhos. No entanto, com o tempo e as possibilidades de ter boa música em casa, aprendi a escrever com um fundo musical de acordo com o que escrevo. Os noturnos de Chopin para os episódios calmos, ou os sextetos de Brahms para as tardes felizes. Em contrapartida, não tornei a ouvir Mozart durante anos, desde que me assaltou a ideia perversa de que Mozart não existe, porque quando é bom é Beethoven, e quando é mau é Haydn.
Nos anos em que evoco estas memórias, consegui o milagre de que nenhuma espécie de música me incomode para escrever, embora talvez não tenha consciência de outras virtudes, pois a maior surpresa foi-me dada por dois músicos catalães, muito jovens e atentos, que julgavam ter descoberto afinidades surpreendentes entre O Outono do Patriarca, o meu sexto romance, e o Terceiro Concerto para Piano de Béla Bartók. É verdade que o ouvia sem piedade enquanto escrevia, porque me criava um estado de espírito muito especial e um pouco estranho, mas nunca pensei que me pudesse ter influenciado a ponto de se notar na minha escrita. Não sei como ficaram a saber daquela fraqueza os membros da Academia Sueca, que o colocaram como fundo na entrega do meu prémio. Agradeci-o do fundo da alma, como é evidente, mas se me tivessem perguntado - com toda a minha gratidão e o meu respeito por eles e por Béla Bartók — teria gostado de alguma das romanzas naturais de Francisco el Hombre das festas da minha infância.
Gabriel García Marquez, in Viver para Contá-la

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