"Este ódio de tudo o que é humano, de tudo
o que é 'animal' e mais ainda de tudo que é
'matéria', este horror dos sentidos (...) tudo isso
significa (...) vontade de aniquilamento,
hostilidade à vida, recusa em se admitir
as condições fundamentais da própria vida".
o que é 'animal' e mais ainda de tudo que é
'matéria', este horror dos sentidos (...) tudo isso
significa (...) vontade de aniquilamento,
hostilidade à vida, recusa em se admitir
as condições fundamentais da própria vida".
Nietzsche
O
Homem é o novo rico da natureza. Assim que nos demos conta de que éramos os
únicos na vizinhança que falávamos, fazíamos as quatro operações e conseguíamos
encostar o dedão no mindinho, ficamos profundamente, irremediavelmente bestas.
Cobrimos a pele com panos, penteamos o cabelo pra trás, passamos uma salivinha
na sobrancelha, dissemos: adeus, bicho! e saímos da selva.
Nem
mal deixamos o bosque, passamos a esnobá-lo e a condenar as atitudes de todos
os seus habitantes. Nós éramos superiores! Nós dominávamos a natureza! Nós
usávamos ferramentas, meias e fio dental!
Novo
rico que se preze, no entanto, dá bandeira. Há sempre um douradinho além da
conta, um sotaque suburbano escapando num momento de exaltação, um conversível
rosa com a placa mom ou dad. Com a humanidade também é assim. Por mais que
consigamos trocar nossos odores naturais por mentol, eucalipto ou tutti-frutti,
gastemos um bilhão de dólares em pesquisa para criar lâminas capazes de raspar
perfeitamente nossos pêlos e cubramos toda a crosta da terra com asfalto e
carpete sintético, um ato sempre nos denunciará o passado selvagem, a natureza
animal: a cagada. Ali não tem desculpa, não tem disfarce.
A
merda é nossa ligação perene com a floresta, com o barro de onde viemos. Aí não
tem talher nem tailleur nenhum que nos diferencie da arara ou do tamanduá. Nus
como as trutas, acocorados como os cães, expelimos a verdade universal,
fisiológica, cilíndrica e obscura que por tanto tempo tentamos ocultar. Somos
animais!
Temendo
uma reflexão mais elaborada sobre o assunto, e sabendo das consequências que
tamanha verdade traria uma vez revelada, desde cedo cuidamos de camuflar o
assunto. Fizemos com a bosta o que fazemos com as putas, as drogas e tudo
aquilo que é necessário existir, mas não é preciso divulgar; marginalizamo-la.
Condenamos as fezes ao ostracismo.
No
início, enquanto vagávamos nômades, a coisa era bem fácil. O sujeito
simplesmente se afastava um pouco da horda, fazia o que tinha de fazer e ia
embora, deixando as sujeiras para trás. Estávamos literalmente cagando e
andando.
Quando
os primeiros povos dominaram as técnicas de irrigação e, portanto, a
agricultura, passaram a viver fixos num determinado local, e defecar ficou um
pouquinho mais complicado. O sujeito tinha que sair da aldeia, andar um pouco,
achar uma moita, cavar um buraco, fazer e enterrar. Durante muito tempo a coisa
rolou assim, trabalhosa, mas sem maiores problemas.
Foi
o crescimento da população e das aldeias que começou a complicar o processo. A
moitinha ia ficando cada vez mais longe de casa, corria-se sempre o risco de se
encontrar um conhecido por lá e, pior de tudo, cavar um buraco de segunda mão.
Dizem
que foi um bretão chamado Walter Collins que teve a brilhante ideia: cavar um
buraco bem fundo no quintal de casa e cercá-lo por paredes. Em pouco tempo a
invenção de Walter, assim como suas iniciais, já podiam ser vistas em grande
parte do mundo. Parecia que o problema havia sido solucionado. Mas veio a
revolução industrial, o grande êxodo para as cidades e os quintais, como se
sabe, foram pra cucuia.
Talvez
tenha sido esse o momento mais difícil da humanidade frente aos seus
excrementos, o clímax entre o Homem e sua sombra animal. Tivemos que trazer a
bosta para dentro de nosso próprio lar. Para que isso fosse possível, bastava
que jamais assumíssemos o verdadeiro fim do aposento que covardemente,
eufemisticamente, chamamos de banheiro. Sim, meus caros, para não dar nas
vistas, inventamos o chuveiro, a banheira, a higiene bucal, o secador de
cabelo, o rímel, o blush e o batom, a acne e os tratamentos antiacne e todas as
outras coisas para se fazer ali. Além disso, criou-se um arsenal para se
disfarçar o cocô: sprays com odor de rosas, sachês que deixam a água da privada
azul, verde ou rosa, exaustores, bidês e papeis higiênicos perfumados.
Ali,
naquele ambiente cientificamente controlado, podemos aliviar as nossas
necessidades com o máximo distanciamento possível. Após dar a descarga, nosso
cocô é mandado para esgotos submersos, que desembocam em rios que vão dar lá
longe no oceano. Sanamos o problema por enquanto, mas é só uma questão de
tempo.
Todo esse cocô está se unindo, formando o
maior movimento underground do mundo. Nossas cidades, nossos países estão
boiando sobre rios de merda. Fala-se muito no fim do petróleo e no fim da água,
mas não será assim que nós morreremos. Numa incerta manhã um cidadão dará a
descarga e, como na piada, ouvirá o estrondo: o subsolo, entupido, explodirá. A
verdade, reprimida por séculos e séculos, emergirá. Só nesse dia todos
perceberão o tamanho da cagada em que nos metemos desde o dia em que resolvemos
sair da floresta. E não haverá sachê nem bom ar que dê jeito. Como se sabe, só
as baratas sobreviverão.
Antonio
Prata, in Douglas e outras histórias
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