Quando
entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o
menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum
tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível.
Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes
(bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na
areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz?, eu
perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente
o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto?, ele lembrou e foi em seguida
até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy.
Fixei
o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o
menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais
diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas
num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a
mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a
espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e
direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de
tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em
desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d'água.
Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e
logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços
de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no
sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois
dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão
adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a
boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os
olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo
com gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo
no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o
decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o
suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os
resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora
faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o
artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o
seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer
coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias.
E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles
degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho.
Cortei
pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava
olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de
sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom
caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de
esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda
conversavam em voz baixa - foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O
menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me
com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um
sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável
até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu
disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um
filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito
bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a
avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar.
Voltei
ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o
velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para
ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia
com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua
cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de água e um prato de massa ainda
intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta.
Puxei
a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa
sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava
desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada
na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou
por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me
despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila.
Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca),
Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada.
Pressenti
o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta.
O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escura na luz turva que ia
dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês
com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao
longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro
com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a
palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto.
No
fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei
através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia
vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens.
Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre
estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na
minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua
cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos
arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa,
A senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e
indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa
horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do
velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom!
Foi encontrado pelo motorista na segunda-feira e o crime foi no sábado. Estava
nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?!
Ele morava num apartamento aqui perto, a policia veio perguntar mas o que a
gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich!
Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e
ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já
vou!, ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da
porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência,
já vou!...
Olhei para fora. Enquadrado pela janela,
o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não,
nem peixe nem carne. Uma salada. Fiquei olhando a espuma branca do chope ir
baixando no copo.
Lygia
Fagundes Telles, in
Invenção e memória
Nenhum comentário:
Postar um comentário