terça-feira, 19 de novembro de 2013

Bocuse of you

A notícia mais comentada aqui na barbearia Tambaú (por sinal, a manicure diplomada no Rio de Janeiro ainda não chegou, mas Raimundo está redecorando completamente o ambiente e renovando o material de leitura) é, evidentemente, a chegada de Paul Bocuse ao Brasil. Poucos assuntos chamam tanto a atenção dos freqüentadores da barbearia quanto comida, principalmente alguns, que comem bastante menos do que estimariam, caso, por exemplo, do gari Júlio Cabeça Reta, o qual, aliás, me revelou outro dia que seu nome completo é Júlio Flávio Batista Conceição - e pode ser até parente me disse ele. Embora eu não vá pedir nada, acrescentou ele, mesmo porque, se for parente, é afastado, e tem a parentela mais chegada para o homem cuidar.
Paul Bocuse tinha mesmo que pintar na conversa, porque Raimundo havia acabado de passar no mercadinho ao lado e presenciado uma cena triste, a respeito de um quilo e pouco de filé, que estava embrulhadinho e marcando 264 cruzeiros.
— Eu estava procurando uma língua para fazer no forno - disse Raimundo, com os olhos de quem contempla um imediato aumento no preço do cabelo e barba  quando bati os olhos em cima. Duzentos e sessenta e quatro. Não é brincadeira, não, dr. Beto: duzentos e sessenta e quatro. Aí eu fui perguntar no caixa se não era engano e a moça me disse que eu era o quinto ou sexto que perguntava. E que aquele povo todo no balcão de carne não era para comprar carne, era para olhar aquele peso de filé, benza Deus.
— Deve ser por causa de Paul Bocuse - disse dr. Beto, que, quando não está fazendo a barba ou enfiando troços na clientela do Inamps, assiste televisão o tempo todo.
— É ministro novo? - perguntou Cabeça Reta. — É todo dia uma novidade!
— Você não viu na televisão? - falou dr. Beto. — É um cozinheiro francês muito famoso. Veio passar mais uma temporada no Brasil, para divulgar conhecimentos culinários.
— É por causa desse francês que estamos aí com esse filé de muitos contos? - perguntou Cabeça Reta. — Esse filé é francês?
— Deve ser! - berrou seu Memé, que tinha acabado de chegar do andar de cima, para tomar uma genebra, coisa que só pode fazer sem pedir dinheiro à mulher no dia do pagamento da aposentadoria, porque, antes de entregar o dinheiro a ela, ele fica com a fração. Seu Memé vira outro homem, no dia em que bota a mão na fração.
— A gente importa feijão, arroz, carne, cebola, alho, a zorra toda. Agora, escreva aí você, lá no jornal de São Paulo, que em matéria de equipamentos de som já vamos ficar auto-suficientes. Safadagem, safadagem!
— Esse Because - perguntou Cabeça Reta - é das discotecas?
— Imbecil! - gritou Raimundo. — Não é Because, é Bacuso. Because é inglês. I love because, because, I looove - cantou Raimundo.
— Mas Bacusio é francês - falou Cabeça Reta. — Quem disse foi dr. Beto.
— Sim - explicou pacientemente Raimundo. — O Bacuse é que é francês, o because é que é inglês.
— Um enrola a língua para um lado, outro enrola para o outro disse Cabeça Reta brilhantemente. — E, no meio, quem vai enrolado semos nós. Estamos acordados.
— Falou bonito, Júlio - gritou seu Memé, tendo aquele arrepio que dá a primeira talagada de genebra. — Precisamos acabar com a exploração do homem pelo homem.
— O homem não explora o homem, oxente - disse Cabeça Reta, que estava ficando cada vez mais ilustrado. — O homem explora nós, que ele também não é besta.
— Você gosta de genebra, Júlio? - disse seu Memé, com um fundo olhar de admiração.
— Eu só quero saber do seguinte - discursou Cabeça Reta, pegando sonhadoramente no cabo da vassoura e olhando para o alto, igualzinho ao poeta cabeludo lá na estátua da praça Castro Alves - Quem é que pega o filé do povo e entrega ao estrangeiro?
— Eu... - disse seu Memé, com lágrimas cívicas genebrinas lhe aflorando aos olhos.
— Eu só queria saber - continuou Cabeça Reta, levantando os indicadores como vira os emedebistas fazendo no largo do Tanque - quem é que ganha com o bife, se é o francês ou inglês ou o americano!
— Vá varrer, Cabeça Reta - gritou da rua outro gari, que estava passando na hora.
Cabeça Reta teve que parar no meio do discurso. Mas somente ficou assim um intervalo curto e então pegou a bagana pendurada na orelha, alisou a bagana, botou a bagana na boca e foi saindo, falando côo se acreditasse e não acreditasse:
— Um dia - disse Cabeça Reta - eu ainda como esse filé.
João Ubaldo Ribeiro

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