A
notícia mais comentada aqui na barbearia Tambaú (por sinal, a manicure
diplomada no Rio de Janeiro ainda não chegou, mas Raimundo está redecorando
completamente o ambiente e renovando o material de leitura) é, evidentemente, a
chegada de Paul Bocuse ao Brasil. Poucos assuntos chamam tanto a atenção dos
freqüentadores da barbearia quanto comida, principalmente alguns, que comem
bastante menos do que estimariam, caso, por exemplo, do gari Júlio Cabeça Reta,
o qual, aliás, me revelou outro dia que seu nome completo é Júlio Flávio
Batista Conceição - e pode ser até parente me disse ele. Embora eu não vá pedir
nada, acrescentou ele, mesmo porque, se for parente, é afastado, e tem a
parentela mais chegada para o homem cuidar.
Paul
Bocuse tinha mesmo que pintar na conversa, porque Raimundo havia acabado de
passar no mercadinho ao lado e presenciado uma cena triste, a respeito de um
quilo e pouco de filé, que estava embrulhadinho e marcando 264 cruzeiros.
—
Eu estava procurando uma língua para fazer no forno - disse Raimundo, com os
olhos de quem contempla um imediato aumento no preço do cabelo e barba
quando bati os olhos em cima. Duzentos e sessenta e quatro. Não é brincadeira,
não, dr. Beto: duzentos e sessenta e quatro. Aí eu fui perguntar no caixa se
não era engano e a moça me disse que eu era o quinto ou sexto que perguntava. E
que aquele povo todo no balcão de carne não era para comprar carne, era para
olhar aquele peso de filé, benza Deus.
—
Deve ser por causa de Paul Bocuse - disse dr. Beto, que, quando não está
fazendo a barba ou enfiando troços na clientela do Inamps, assiste televisão o
tempo todo.
—
É ministro novo? - perguntou Cabeça Reta. — É todo dia uma novidade!
—
Você não viu na televisão? - falou dr. Beto. — É um cozinheiro francês muito
famoso. Veio passar mais uma temporada no Brasil, para divulgar conhecimentos
culinários.
—
É por causa desse francês que estamos aí com esse filé de muitos contos? -
perguntou Cabeça Reta. — Esse filé é francês?
—
Deve ser! - berrou seu Memé, que tinha acabado de chegar do andar de cima, para
tomar uma genebra, coisa que só pode fazer sem pedir dinheiro à mulher no dia
do pagamento da aposentadoria, porque, antes de entregar o dinheiro a ela, ele
fica com a fração. Seu Memé vira outro homem, no dia em que bota a mão na
fração.
—
A gente importa feijão, arroz, carne, cebola, alho, a zorra toda. Agora,
escreva aí você, lá no jornal de São Paulo, que em matéria de equipamentos de som
já vamos ficar auto-suficientes. Safadagem, safadagem!
—
Esse Because - perguntou Cabeça Reta - é das discotecas?
—
Imbecil! - gritou Raimundo. — Não é Because, é Bacuso. Because é inglês. I love
because, because, I looove - cantou Raimundo.
—
Mas Bacusio é francês - falou Cabeça Reta. — Quem disse foi dr. Beto.
—
Sim - explicou pacientemente Raimundo. — O Bacuse é que é francês, o because é
que é inglês.
—
Um enrola a língua para um lado, outro enrola para o outro disse Cabeça Reta
brilhantemente. — E, no meio, quem vai enrolado semos nós. Estamos acordados.
—
Falou bonito, Júlio - gritou seu Memé, tendo aquele arrepio que dá a primeira
talagada de genebra. — Precisamos acabar com a exploração do homem pelo homem.
—
O homem não explora o homem, oxente - disse Cabeça Reta, que estava ficando
cada vez mais ilustrado. — O homem explora nós, que ele também não é besta.
—
Você gosta de genebra, Júlio? - disse seu Memé, com um fundo olhar de
admiração.
—
Eu só quero saber do seguinte - discursou Cabeça Reta, pegando sonhadoramente
no cabo da vassoura e olhando para o alto, igualzinho ao poeta cabeludo lá na
estátua da praça Castro Alves - Quem é que pega o filé do povo e entrega ao
estrangeiro?
—
Eu... - disse seu Memé, com lágrimas cívicas genebrinas lhe aflorando aos
olhos.
—
Eu só queria saber - continuou Cabeça Reta, levantando os indicadores como vira
os emedebistas fazendo no largo do Tanque - quem é que ganha com o bife, se é o
francês ou inglês ou o americano!
—
Vá varrer, Cabeça Reta - gritou da rua outro gari, que estava passando na hora.
Cabeça
Reta teve que parar no meio do discurso. Mas somente ficou assim um intervalo
curto e então pegou a bagana pendurada na orelha, alisou a bagana, botou a
bagana na boca e foi saindo, falando côo se acreditasse e não acreditasse:
— Um dia - disse Cabeça Reta - eu ainda
como esse filé.
João
Ubaldo Ribeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário