Chão da infância. Algumas lembranças me
parecem fixadas nesse chão movediço, as minhas pajens. Minha mãe fazendo seus
cálculos na ponta do lápis ou mexendo o tacho de goiabada ou ao piano; tocando
suas valsas. E tia Laura, a viúva eterna que foi morar na nossa casa e que
repetia que meu pai era um homem instável. Eu não sabia o que queria dizer
instável mas sabia que ele gostava de fumar charutos e gostava de jogar. A tia
um dia explicou, esse tipo de homem não consegue parar muito tempo no mesmo
lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade para outra como
promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro, dava
aquele suspiro e ia tocar piano. E depois, arrumar as malas.
— Escutei que a gente vai se mudar outra
vez, vai mesmo? perguntou minha pajem Maricota. Estávamos no quintal chupando
os gomos de cana que ela ia descascando. Não respondi e ela fez outra pergunta:
Sua tia vive falando que agora é tarde porque a Inês é morta, quem é essa tal
de Inês?
Sacudi a cabeça, não sabia. Você é burra,
Maricota resmungou cuspinhando o bagaço. Fiquei olhando meu pé amarrado com uma
tira de pano, tinha sempre um pé machucado (corte, espinho) onde ela pingava
tintura de iodo (ai, ai!) e depois amarrava aquele pano. No outro pé, a
sandália pesada de lama. Essa pajem era uma órfã que minha mãe recolhera, tive
sempre uma pajem que me dava banho, me penteava (papelotes nas festas) e me
contava histórias até que chegasse o tempo da escola. Maricota era preta e
magra, a carapinha repartida em trancinhas com uma fita amarrada na ponta de
cada trancinha. Não sei da Inês mas sei do seu namorado, tive vontade de
responder. Ele tem feição de cavalo e é trapezista no circo do leão desdentado.
Estava sabendo também que quando ela ia encontrar o trapezista, soltava as
trancinhas e escovava o cabelo até vê-lo abrir-se em leque como um sol negro.
Fiquei quieta. Tinha procissão no sábado e era bom lembrar que eu ia de anjo
com asas de penas brancas (meu primeiro impulso de soberba) enquanto que as
asas dos outros anjos eram de papel crepom.
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