A viagem de Maturi do Alto
até Vargem Nova do Ingá, naquela manhã fria de julho, já estava me enfastiando.
Motivos tinha por demais para tal: tinha acordado cedo, a enxaqueca me
incomodava, era uma viagem a trabalho e aquela pequena e recôndita cidade não
era servida por empresa de ônibus. O carro de linha, uma C10 Chevrolet, deixava
em total desconforto os passageiros nos bancos de madeira na carroceria
amontoada de bagagens, víveres, compras, utensílios, animais até.
Amuado, a falação corriqueira
entre os outros me irritava ainda mais. O carro não andava, sofreado pelo
excesso de peso. Mas isso não era motivo de preocupação para o chofer Totonho
de Zacarias que, a cada 500 metros, parava à beira da estrada aos acenos dos
futuros passageiros, ante os maldizeres dos que já estavam, à despeito de terem
sido, noutras vezes, motivos das ditas maledicências. Totonho, resoluto, pedia:
“Pessoal, lá na frente tá vago!”. E lá ia a turba de trás apertar ainda mais os
da frente. E continuava o petitório: “Dona Zefinha, esse pote está tomando o
canto de um cristão. Leve ele no colo, por bondade!”. E mais: “Seu Chiquinho,
esse bode que é melhor pros três e pra todos, que vá amarrado nos tamboretes,
no bagageiro”.
Depois essa reorganização
provisória, lá se vinha na próxima parada, após os renovados apelos dos
fatigados passageiros, outra arrumação nunca definitiva.
O cheiro agradável de mato
verde que adentrava constantemente no carro; a paisagem com as suas diferentes
verduras; os açudes cheios e a sangrar; O Pau-D'arco roxo e o amarelo com suas
florescências em apogeu; aqui, o cantar de um concriz; ali, a algazarra de um
bando de periquitos; nada disso me satisfazia, não adentrava o meu espírito ora
inquieto, enquanto o carro descia a serra.
E na penúltima parada, subiu
uma senhora e o filho, um pirralho de cerca de cinco anos.
O garoto, muito vívido, fazia
observações e interrogações constantes à sua mãe: “Olhe, olhe, mãe, aquela casa
é azul. Não é azul?”; “Ei, mãe, viu o bezerro mamando, não tava mamando, mãe?”;
“Mãe, mãe, que árvore é aquela que é verde diferente daquela outra verde,
aquilo é verde, não é mãe?”. E a mãe, paciente e maternalmente, respondia aos
questionamentos do filho, como a educá-lo.
O guri às vezes me incluía
nas suas desarrazoadas inquirições: “Né não, seu moço?”; “Viu também, moço?”. E
isso me irritava até os ossos, mais que o excesso de passageiros, a matalotagem
e as tralhas.
A mãe e o filho foram os
primeiros a descerem já na entrada de Vargem Nova do Ingá, e o carro
afastou-nos das novas indagações do guri. Para destilar todo o veneno acumulado
na viagem, comentei com o passageiro ao lado da impertinência do menino,
tratando-o como maluco. O senhor, com voz austera, me indagou: “O senhor é
daqui da região?”. Minha resposta foi um seco “não”. Ele continuou: “Então o
senhor não conhece o caso. Juninho, aquele menino, quando tinha dois anos,
levou uma queda e cegou de vez. Os pais dele são agricultores, bateram todos os
doutor dessa região, até foram na capital, e nada de voltar a vista da criança.
Mas seu moço, de um mês pra cá ele está recuperando a visão. Milagre, senhor.
Que outra coisa mais há de ser?”
E eu, homem letrado, senti um
peso no coração, maior que minha vergonha. Compreendi, naquela explicação
simples e direta, o quanto fui preconceituoso, e não medi as consequências
indevidas do meu ato, baseando-me unicamente nas aparências e no momentâneo,
ciente em uma racionalidade tacanha da inferioridade racial, social.
Isso ocorreu a cerca de
trinta anos e deixou uma marca indelével em minha alma. Depois desse episódio,
tornei-me mais cuidadoso: leio nos outros o diferente, o diverso, assimilando,
entre as divergências, o quanto temos em semelhança.
Se essa
viagem ocorresse hoje, estaria em sintonia com todos: Totonho de Zacarias, Dona
Zefinha, Seu Chiquinho, o Senhor do lado, Juninho e sua Mãe, e eu poderia
desfrutar, de forma diversa, a dureza do banco na carroceria, o amontoado das
bagagens, as tralhas, a falação embaralhada dos passageiros, bem como poderia
distinguir os diversos cheiros de mato verde com suas diferentes verduras;
vislumbrar, na paisagem, os açudes cheios e a sangrar; distinguir o Pau-D'arco
roxo e o amarelo com suas florescências em apogeu; assobiar, em uníssono, com o
cantar de um concriz; fotografar a algazarra de um bando de periquitos;
satisfeito, tudo e todos adentrando o meu espírito quieto, enquanto o carro
descesse a serra.
Elilson José Batista, in Alumbramentos
– Inéditos e Afins
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