O menino da vizinha dos fundos, trepado
no muro como ele vive, deve ter investigado bem o meu quintal, porque hoje me
gritou: "do-o-na, do-o-na, a mãe falou se a senhora quer vender umas
panelas pra ela." Me desgostou muito a forma de pedir, o pedido em si. Com
tanto vizinho, porque Dona Alvina foi enxergar logo as minhas panelas? A
distância entre a casa dela e a minha é a mesma entre a casa dela e a do Osmar
Rico. É claro que percebeu minha fraqueza. Não posso esconder, está na minha
cara a atração que exercem sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres,
eu os farejo, pressinto, me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam
no barracão é porque estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por
que então não fui capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o
coração exultante de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino,
contrariada: as panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em
comprar, já sabendo que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de
volta e peguei a melhor panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a
boa demais, servia pra tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei a
panela pura. Foi uma bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não descansei
enquanto não inventei um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês só na casa
velha, toda escorada, que o dono do curtume deu para ela morar, já fez horta,
jardim, os cacarecos são limpíssimos. A menina pequetita, paninho na cabeça,
brinquinho de ouro na orelha desensebada. Fui com desculpa de comprar cebolinha
e fiquei sabendo: ela faz faxina nas casas, o marido trabalha fora e só vem fim
de semana, eles não são daqui não. Muito bem, pois saí sem ter coragem de dizer
a ela a única coisa que meu coração pedia que dissesse: olha, Dona Alvina,
somos vizinhas e a senhora pode contar comigo no que precisar, estou à sua
disposição. Isto falei toda emproada pra Dona Leonor, pra Dona Ester, porque no
fundo sabia, são destas vizinhas que pedindo um dente de alho pagam logo com
uma réstia de cebolas, enfim, me serviriam quando eu precisasse sem me dar
amolação. Dona Alvina é diferente, porque é precisada mesmo. Se me pedir cinquenta
cruzeiros vai demorar um ano pra pagar. Qual é o dinheiro que entra lá que seus
quatro crioulinhos não consomem num átimo? E ela deve pensar assim: "Dona
Violeta é rica, pode muito bem esperar." Posso mesmo. Por que então, meu
Deus, não sei ajudar a Alvina? Empresto o dinheiro, passam nem duas semanas
fico dizendo: ao menos satisfação eu merecia; não é por causa do dinheiro. E
outras bobagens mais que todo mundo fala nestas situações. O fato é que estou
chateada com a mudança deles pra cá. Antes era Dona Terezinha que, bem ou mal,
eu vivia acudindo. Passou mais de ano sem morador na casa, um verdadeiro
descanso. Agora envém Dona Alvina que, sem saber, é um ferrão na mão de Deus.
Não chupo mais uma bala sem pagar um dízimo de tristeza. Claro que está tudo
errado, qualquer sacristão bobo sabe disso, menos eu que não atino com a forma
de gozar dos frutos da terra, criados por Deus para todos comerem em perfeita
alegria, eu inclusive. Demoraram um dia só para descobrir minha mangueira de
cinquenta metros: "do-o-na, a mãe falou se pode emprestar a mangueira pra
nós aguar a horta?" Este batido durou um mês. Pedro até botou um trapo no
muro pra não esfolar a borracha. Depois foi ficando chato. Queria lavar o
carro, aguar nossa horta mais cedo, a mangueira com Dona Alvina. Bibia falava:
"mãe, que povo folgado, vai ser descansado assim! Acho a senhora e o pai
muito bobos." Não podia aplaudir a menina, mas por seguro matutamos: a voz
das crianças é a voz de Deus. De noite Pedro bateu na casa da Alvina para
bispar a situação. Se pudesse, falou o marido, mandava ligar a água, mas onde
vou arranjar dinheiro? Pedro foi na Companhia, pagou a taxa, acabou a questão
da mangueira. Nem assim sosseguei: será que foi correto? Não teria sido mais
edificante emprestar a mangueira com paciência até eles arranjarem modo de
pagar a taxa? Vejo o marido da Alvina passar aos sábados com umas mexericas que
ele arranjou pra vender e penso: nem pra dar uma satisfação, um sinal. Pedro
nem se lembra mais. É diferente de mim, nunca dá meia panela. Por isso a
alegria dele é inteira.
Adélia
Prado, in Os componentes da banda
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