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I
João Carnaúba, dos Carnaúbas da Várzea
de Baixo, nos seus 56 anos de vida, afirmava que nunca tinha visto uma seca
daquela. Já não dormia, e quando isso
ocorria, não era sono, só pesadelos. Apareciam os animais de sua gleba gigantes,
mas esquálidos, a superlativar o sofrimento na forma de mugidos, relinchos,
balidos e berros, numa onomatopeia que o despertava em alvoroço.
Todos sofrem com a seca. Todavia, João Carnaúba
não se preocupava tanto com os seus familiares e agregados. Os animais,
domesticados, dependiam sobremaneira dos zelos e encaminhamentos do homem. E a
escassez d’água e de alimentos atingiam mais duramente os brutos que os
humanos.
Para fugir dos pesadelos, esse homem já
saia de casa de madrugada, a perscrutar o céu, a forçar indícios que viessem
amenizar o seu sofrimento e dos outros. Em vão. Com os primeiros raios, como
que a trazer-lhe à realidade, encaminhava-se ao curral para levar os animais
para beber da pouca água que ainda restava no açude.
Quanto à comida, não tinha mais que se
falar da existência de ração verde para os animais: palmas e macambiras já
tinham se acabado, restando só recolher – cada vez mais distante – xique-xiques
e mandacarus para serem assados em fogueiras para a queima dos espinhos, para
serem juntados a uma forragem que
incluía até papelão.
Estava uma situação estarrecedora. Dona
Chiquinha, esposa de João, repisava: “Homem, venda esse gado por qualquer
preço, fiado se necessário. Eu não aguento mais esse sofrimento desses pobres brutos.
Eles estão consumindo nossos recursos e nossas forças”. Carnaúba retrucava: “A
quem, mulher? Se nossos vizinhos estão na mesma penúria, sem pasto e sem água,
lutando para escapar com os seus. Além do mais, vender a um marchante para
descarnar o quê nessas ossadas?”
Certo era que não havia mais dinheiro
para sustentar o gado com rações de farelos e outros nutrientes caros, pois se
vendesse uma rês por mês, só dava para sustentar, com parcimônia, duas reses. A
matemática era infalível: nessa pisada, o pequeno rebanho desapareceria...
A longa estiagem afetava os homens e os
animais. Não se ouviam os cantos dos pássaros; tão-só, um agouro, longe, a
deprimir mais o contexto e o ambiente. A tristeza dos animais, notadamente a
bovina, contaminava a todos. João Carnaúba, típico sertanejo do semiárido,
tinha um constante olhar vago, marcante nos desesperançado.
II
Tudo parado. De vez em quando, o
silêncio é quebrado pelo cantar monótono das cigarras, aqui e alhures. O
mormaço é sufocante. Animais e pássaros evitam se deslocar e se agasalham nas
raríssimas sombras e abrigos. A terra está ressequida há cerca de oito meses,
num estado abiótico. Não há que se falar em flora: tão-só galhos e troncos, que
acinzentam a visão.
Às vezes surge um pequeno pé-de-vento, que
não traz frescor, mas sim vai crescendo e se transforma num redemoinho,
levantando tudo que posso ser suspenso com sua força. Findo o fenômeno
agourento, observa-se a sujidade deslocada.
Visto por cima, o tom cinza é
pontilhado por carcaças de animais, notadamente reses que não resistiram à fome
e à sede. No mais, pequenos oásis, os juazeiros, esses sertanejos que teimam em
permanecer verdes, num ambiente tão adverso para se demonstrar verdura.
Nos barreiros, pequenos açudes e
riachos resta quase nada, ou estão totalmente vazios. Difícil encontrar água,
nessas condições, que não seja para o consumo do astro-rei. Jogue-se um pouco
de água que, instantaneamente, o precioso líquido se esvai.
Nada se move. De repente os animais se
inquietam. E se apercebe a mudança. O mormaço cresce. E a torre se avoluma,
refletindo os raios solares num tom laranja. Já se veem raios, e se ouve os
trovões, ao longe. Uma aragem benfazeja e contínua prepara o terreno para o
grande ato. O rebombo está mais próximo e mais forte, replicado até as abas da
serra.
Cai o primeiro pingo e outro, e outro,
e outro, de forma lenta, aqui, ali, acolá. Surge o cheiro característico da
terra ressequida sendo aguada, que envolve a tudo e a todos. Já se ouve a chuva
grossa se aproximando. A Natureza agora atua com vigor.
Pequenos filetes de água se avolumam,
descem nas depressões e se agrupam nos córregos, que afluem nos riachos, a
desaguar nos açudes e barragens ressequidos.
Chove forte. Já a força da água
barrenta dos riachos carrega carcaças de animais, galhos, árvores inteiras,
tudo que estava no seu leito seco.
Quem não conhece esse fantástico
ecossistema se impressionará com o antes e o depois. Como que por milagre,
rebrota toda a fauna sertaneja logo após a primeira chuva. Parece que
adormecido, em estado de torpor, à espera da sagrada água, o pasto vigora no
outrora campo desnudo. As árvores trocam a sobriedade da cor cinza. Há alegria,
o estado de ânimo é outro quando chove no sertão. A flora e a fauna
revigoradas, em todo seu esplendor.
Além do mais, retorna à região o tiziu,
com seu característico canto que o nomeou, a saltitar verticalmente para fazer
corte às fêmeas, e impressionar os adversários. Parada a invernada, o tiziu vai
a outras paragens, até o retorno das águas.
III
Após a colheita segura e os animais
engordados, João Carnaúba, garboso e falastrão, proseia no balcão da Botega com
Tenório Barbalho, seu vizinho: “Compadre, três anos seguidos de seca, eles
diziam! E falavam também em esquentamento e esfriamento de água do mar, dos
ventos que vinham da Amazônia e dos oceanos, esses palavreados dos homens das
ciências não quer dizer nadinha de nada, compadre. Eles podem ser sabidos lá
com seus estudos, mas não mandam na natureza. Quando Deus fia, pode cortar as
terras, amigo, e jogar as sementes”. Tenório Barbalho confirmava com a cabeça
e, cofiando a barba, sentenciou: “Amigo João, para justificar os erros das
previsões deles, agora alegam que essa chuvarada é obra de uma frente fria. Que
essa frente fria desgarre todo ano, que será bem vinda”.
Após três meses de invernada, renasce a
alegria sertaneja. As festas juninas são revigorantes, com farturas de comidas,
bebidas e forró. E queima-se mais lenha na fogueira – é certo - em homenagem
aos padroeiros sertanejos. Mas os meteorologistas não se fazem de arrogantes e
participam prazerosamente das festas.
Se
a privação de algumas coisas necessárias é parte essencial da felicidade, então
o sertanejo é feliz. Depois de infindáveis meses em que lutou pela vida – dele
e dos circunjacentes – e aprendeu a suportar as agruras que a natureza lhe
traz, a sua sabedoria empírica já entende que tudo é cíclico: vida e morte; bem
e mal; real e ideal; seca e inverno. E goza esse período de bonança certo que
não será permanente.
Elilson José Batista,
in Revista Cruviana n° 5, p. 126-130
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