quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Ser tão resistência

Fonte da imagem: Google

I

João Carnaúba, dos Carnaúbas da Várzea de Baixo, nos seus 56 anos de vida, afirmava que nunca tinha visto uma seca daquela.  Já não dormia, e quando isso ocorria, não era sono, só pesadelos. Apareciam os animais de sua gleba gigantes, mas esquálidos, a superlativar o sofrimento na forma de mugidos, relinchos, balidos e berros, numa onomatopeia que o despertava em alvoroço.
Todos sofrem com a seca. Todavia, João Carnaúba não se preocupava tanto com os seus familiares e agregados. Os animais, domesticados, dependiam sobremaneira dos zelos e encaminhamentos do homem. E a escassez d’água e de alimentos atingiam mais duramente os brutos que os humanos.
Para fugir dos pesadelos, esse homem já saia de casa de madrugada, a perscrutar o céu, a forçar indícios que viessem amenizar o seu sofrimento e dos outros. Em vão. Com os primeiros raios, como que a trazer-lhe à realidade, encaminhava-se ao curral para levar os animais para beber da pouca água que ainda restava no açude.
Quanto à comida, não tinha mais que se falar da existência de ração verde para os animais: palmas e macambiras já tinham se acabado, restando só recolher – cada vez mais distante – xique-xiques e mandacarus para serem assados em fogueiras para a queima dos espinhos, para serem juntados a uma forragem que incluía até papelão.
Estava uma situação estarrecedora. Dona Chiquinha, esposa de João, repisava: “Homem, venda esse gado por qualquer preço, fiado se necessário. Eu não aguento mais esse sofrimento desses pobres brutos. Eles estão consumindo nossos recursos e nossas forças”. Carnaúba retrucava: “A quem, mulher? Se nossos vizinhos estão na mesma penúria, sem pasto e sem água, lutando para escapar com os seus. Além do mais, vender a um marchante para descarnar o quê nessas ossadas?”
Certo era que não havia mais dinheiro para sustentar o gado com rações de farelos e outros nutrientes caros, pois se vendesse uma rês por mês, só dava para sustentar, com parcimônia, duas reses. A matemática era infalível: nessa pisada, o pequeno rebanho desapareceria...
A longa estiagem afetava os homens e os animais. Não se ouviam os cantos dos pássaros; tão-só, um agouro, longe, a deprimir mais o contexto e o ambiente. A tristeza dos animais, notadamente a bovina, contaminava a todos. João Carnaúba, típico sertanejo do semiárido, tinha um constante olhar vago, marcante nos desesperançado.

II

Tudo parado. De vez em quando, o silêncio é quebrado pelo cantar monótono das cigarras, aqui e alhures. O mormaço é sufocante. Animais e pássaros evitam se deslocar e se agasalham nas raríssimas sombras e abrigos. A terra está ressequida há cerca de oito meses, num estado abiótico. Não há que se falar em flora: tão-só galhos e troncos, que acinzentam a visão.
Às vezes surge um pequeno pé-de-vento, que não traz frescor, mas sim vai crescendo e se transforma num redemoinho, levantando tudo que posso ser suspenso com sua força. Findo o fenômeno agourento, observa-se a sujidade deslocada.
Visto por cima, o tom cinza é pontilhado por carcaças de animais, notadamente reses que não resistiram à fome e à sede. No mais, pequenos oásis, os juazeiros, esses sertanejos que teimam em permanecer verdes, num ambiente tão adverso para se demonstrar verdura.
Nos barreiros, pequenos açudes e riachos resta quase nada, ou estão totalmente vazios. Difícil encontrar água, nessas condições, que não seja para o consumo do astro-rei. Jogue-se um pouco de água que, instantaneamente, o precioso líquido se esvai.
Nada se move. De repente os animais se inquietam. E se apercebe a mudança. O mormaço cresce. E a torre se avoluma, refletindo os raios solares num tom laranja. Já se veem raios, e se ouve os trovões, ao longe. Uma aragem benfazeja e contínua prepara o terreno para o grande ato. O rebombo está mais próximo e mais forte, replicado até as abas da serra.
Cai o primeiro pingo e outro, e outro, e outro, de forma lenta, aqui, ali, acolá. Surge o cheiro característico da terra ressequida sendo aguada, que envolve a tudo e a todos. Já se ouve a chuva grossa se aproximando. A Natureza agora atua com vigor.
Pequenos filetes de água se avolumam, descem nas depressões e se agrupam nos córregos, que afluem nos riachos, a desaguar nos açudes e barragens ressequidos.
Chove forte. Já a força da água barrenta dos riachos carrega carcaças de animais, galhos, árvores inteiras, tudo que estava no seu leito seco.
Quem não conhece esse fantástico ecossistema se impressionará com o antes e o depois. Como que por milagre, rebrota toda a fauna sertaneja logo após a primeira chuva. Parece que adormecido, em estado de torpor, à espera da sagrada água, o pasto vigora no outrora campo desnudo. As árvores trocam a sobriedade da cor cinza. Há alegria, o estado de ânimo é outro quando chove no sertão. A flora e a fauna revigoradas, em todo seu esplendor.
Além do mais, retorna à região o tiziu, com seu característico canto que o nomeou, a saltitar verticalmente para fazer corte às fêmeas, e impressionar os adversários. Parada a invernada, o tiziu vai a outras paragens, até o retorno das águas.

III

Após a colheita segura e os animais engordados, João Carnaúba, garboso e falastrão, proseia no balcão da Botega com Tenório Barbalho, seu vizinho: “Compadre, três anos seguidos de seca, eles diziam! E falavam também em esquentamento e esfriamento de água do mar, dos ventos que vinham da Amazônia e dos oceanos, esses palavreados dos homens das ciências não quer dizer nadinha de nada, compadre. Eles podem ser sabidos lá com seus estudos, mas não mandam na natureza. Quando Deus fia, pode cortar as terras, amigo, e jogar as sementes”. Tenório Barbalho confirmava com a cabeça e, cofiando a barba, sentenciou: “Amigo João, para justificar os erros das previsões deles, agora alegam que essa chuvarada é obra de uma frente fria. Que essa frente fria desgarre todo ano, que será bem vinda”.
Após três meses de invernada, renasce a alegria sertaneja. As festas juninas são revigorantes, com farturas de comidas, bebidas e forró. E queima-se mais lenha na fogueira – é certo - em homenagem aos padroeiros sertanejos. Mas os meteorologistas não se fazem de arrogantes e participam prazerosamente das festas.
Se a privação de algumas coisas necessárias é parte essencial da felicidade, então o sertanejo é feliz. Depois de infindáveis meses em que lutou pela vida – dele e dos circunjacentes – e aprendeu a suportar as agruras que a natureza lhe traz, a sua sabedoria empírica já entende que tudo é cíclico: vida e morte; bem e mal; real e ideal; seca e inverno. E goza esse período de bonança certo que não será permanente.
Elilson José Batista, in Revista Cruviana n° 5, p. 126-130

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