Conto é qualquer coisa que se escreve e
se diz que é conto, afirma Mário de Andrade, entre irônico e brincalhão. Será
mesmo? Se tomo, como ponto de partida, a ação e o personagem, por exemplo,
elementos essenciais à estrutura da narrativa, e considerando, sobretudo, suas
respectivas ausências em muitas das incursões difusas da ficção contemporânea,
posso pensar que nem todo conto, na verdade, é conto. Talvez seja prosa
poética, instantâneo descritivo, aquecimento ensaístico, enfim, exercício
vocabular e fraseológico, intensamente refinado em sua fatura formal, mas quase
sempre esvaziado de densidade existencial e conteúdo humano.
Conto é contar, e contar é viver. A bem
dizer, existir, porque, no plano da existência, mais que no plano da vida, as
inquietações culturais e simbólicas invadem e devassam a alma anônima dos
seres.
Demétrio Diniz, escritor potiguar, sabe
isso, e por isto, aposta no chamado da existência humana para povoar suas
histórias com a poesia e a tragédia que espreitam as experiências de cada um,
na particularidade de seu contexto. Tanto em Sob o céu de Natal (Mossoró, Sarau
de Letras, 2012) como em Idas e vindas de São Serapião (Recife, Bagaço, 2013),
deparo-me com uma espécie de gente, criaturas comuns e insólitas, capturada
precisamente naquela situação singular ou naquele “ponto de mutação” que
definem os descaminhos de suas vidas, de repente detonadas pela fatalidade do
mistério, do estranho, do grotesco, do fantástico.
O esquema de suas narrativas, em geral
muito curtas, é mais ou menos este: tudo parece normal no fluir dos
acontecimentos. No entanto, algo inesperado ocorre, e o parente equilíbrio se
desintegra. A ordem trazia a desordem dentro, e as coisas e os personagens
tomam outro rumo, em geral o rumo indefinível das situações trágicas. Em termos
técnicos, diria que os contos de Demétrio Diniz são tipicamente de peripécias,
sintonizados, assim, com a força e a ironia do destino, que frustra sonhos,
altera projetos, desapruma a vida.
“Em paz com Bilac”, no seu entrecho entre
cômico e trágico, e, principalmente, em “Sob o céu de Natal”, esta pequena
obra-prima, da primeira coletânea, assim como os contos “A morte de Caluzinha”,
“Da cor de açafrão”, Feliz ano novo” e “Um velho e simples amor”, da segunda,
exemplificam, a contento, a lógica ambivalente desse paradigma ficcional.
Em todos eles, o aspecto extraordinário,
o detalhe enigmático, a sinuosidade do estranho e do insólito, o nonsense como
que demonstram, por entre os fios secretos e interativos da trama do destino,
que a realidade humana não tem controle, que todos vivemos à beira do abismo e
à sombra do inesperado. Nossas histórias são arquitetadas por narradores
desconhecidos e invisíveis, pequenos demônios sem qualquer complacência.
Observe-se o sofrimento e a morte de
Maria Eugênia, em “Sob o céu de Natal”; veja-se o elo afetivo e mágico da
menina-moça com seu boneco, em “A morte de Caluzinha”; viva-se o abandono de
Glória, em “Da cor de açafrão”, e, sobremaneira, compartilhe-se a longevidade
estéril do amor de Tomás Alonso e Francisca, em “Um velho e simples amor”, para
mergulharmos inteiramente no absurdo que nos ronda e nos devora. A propósito,
não há enredo melhor, para ilustrar a componente desse absurdo, do que a
acidentada e surpreendente trajetória da pequenina imagem do santo português,
em “Idas e vindas de São Serapião”. Ressalte-se, neste conto, além do domínio
da técnica narrativa e da precisão estilística, a especificidade do foco
narrativo, centrado no próprio santo, por um processo de personificação que
reinventa e enriquece a visão da realidade.
Karl Erick Scholhammer,
em “ficção brasileira contemporânea” (2009), ao tratar do miniconto, salienta
que a sua visualidade não se restringe apenas ao apelo fotográfico da
velocidade e da instantaneidade, uma vez que se constrói na “concretude” e na
“autossuficiência” de “um texto in media res” que parece não se apoiar sobre
nenhuma realidade fora de si”, constituindo, ao contrário, “uma parte avulsa
dessa própria realidade, como um pequeno resíduo duro das milhares de imagens e
textos que compõem a trama do nosso cotidiano”.
Ora,
tal consideração se aplica bem ao modelo ficcional de Demétrio Diniz. De um
lado, o acontecimento ímpar, impulsionador, em meio à corrente dos fatos; do
outro, a concepção sintética e a estrutura fechada do conto – tudo leva a crer
– como que formam o tecido dessas imagens, e diria, dessas fabulações, que
presidem o movimento inesgotável das vivências humanas.
De
outra parte, se não há, em Demétrio Diniz, o já convencional experimentalismo
da técnica em âmbito espaço-temporal ou mesmo na engenharia lexical em que
muitos se comprazem, há, no entanto, certo fulgor na elaboração da frase,
precisão dos termos, adequação de recursos expressivos, enfim, figuração da
palavra, o que faz sua linguagem, em recorrentes passagens, alcançar o estatuto
da mais legítima poeticidade. Se duvidar, é só ler e conferir.
Hildeberto Barbosa Filho, in www.substantivoplural.com.br
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