sábado, 10 de agosto de 2013

O acontecimento estranho nos contos de Demétrio Diniz


Conto é qualquer coisa que se escreve e se diz que é conto, afirma Mário de Andrade, entre irônico e brincalhão. Será mesmo? Se tomo, como ponto de partida, a ação e o personagem, por exemplo, elementos essenciais à estrutura da narrativa, e considerando, sobretudo, suas respectivas ausências em muitas das incursões difusas da ficção contemporânea, posso pensar que nem todo conto, na verdade, é conto. Talvez seja prosa poética, instantâneo descritivo, aquecimento ensaístico, enfim, exercício vocabular e fraseológico, intensamente refinado em sua fatura formal, mas quase sempre esvaziado de densidade existencial e conteúdo humano.
Conto é contar, e contar é viver. A bem dizer, existir, porque, no plano da existência, mais que no plano da vida, as inquietações culturais e simbólicas invadem e devassam a alma anônima dos seres.
Demétrio Diniz, escritor potiguar, sabe isso, e por isto, aposta no chamado da existência humana para povoar suas histórias com a poesia e a tragédia que espreitam as experiências de cada um, na particularidade de seu contexto. Tanto em Sob o céu de Natal (Mossoró, Sarau de Letras, 2012) como em Idas e vindas de São Serapião (Recife, Bagaço, 2013), deparo-me com uma espécie de gente, criaturas comuns e insólitas, capturada precisamente naquela situação singular ou naquele “ponto de mutação” que definem os descaminhos de suas vidas, de repente detonadas pela fatalidade do mistério, do estranho, do grotesco, do fantástico.
O esquema de suas narrativas, em geral muito curtas, é mais ou menos este: tudo parece normal no fluir dos acontecimentos. No entanto, algo inesperado ocorre, e o parente equilíbrio se desintegra. A ordem trazia a desordem dentro, e as coisas e os personagens tomam outro rumo, em geral o rumo indefinível das situações trágicas. Em termos técnicos, diria que os contos de Demétrio Diniz são tipicamente de peripécias, sintonizados, assim, com a força e a ironia do destino, que frustra sonhos, altera projetos, desapruma a vida.
“Em paz com Bilac”, no seu entrecho entre cômico e trágico, e, principalmente, em “Sob o céu de Natal”, esta pequena obra-prima, da primeira coletânea, assim como os contos “A morte de Caluzinha”, “Da cor de açafrão”, Feliz ano novo” e “Um velho e simples amor”, da segunda, exemplificam, a contento, a lógica ambivalente desse paradigma ficcional.
Em todos eles, o aspecto extraordinário, o detalhe enigmático, a sinuosidade do estranho e do insólito, o nonsense como que demonstram, por entre os fios secretos e interativos da trama do destino, que a realidade humana não tem controle, que todos vivemos à beira do abismo e à sombra do inesperado. Nossas histórias são arquitetadas por narradores desconhecidos e invisíveis, pequenos demônios sem qualquer complacência.
Observe-se o sofrimento e a morte de Maria Eugênia, em “Sob o céu de Natal”; veja-se o elo afetivo e mágico da menina-moça com seu boneco, em “A morte de Caluzinha”; viva-se o abandono de Glória, em “Da cor de açafrão”, e, sobremaneira, compartilhe-se a longevidade estéril do amor de Tomás Alonso e Francisca, em “Um velho e simples amor”, para mergulharmos inteiramente no absurdo que nos ronda e nos devora. A propósito, não há enredo melhor, para ilustrar a componente desse absurdo, do que a acidentada e surpreendente trajetória da pequenina imagem do santo português, em “Idas e vindas de São Serapião”. Ressalte-se, neste conto, além do domínio da técnica narrativa e da precisão estilística, a especificidade do foco narrativo, centrado no próprio santo, por um processo de personificação que reinventa e enriquece a visão da realidade.
Karl Erick Scholhammer, em “ficção brasileira contemporânea” (2009), ao tratar do miniconto, salienta que a sua visualidade não se restringe apenas ao apelo fotográfico da velocidade e da instantaneidade, uma vez que se constrói na “concretude” e na “autossuficiência” de “um texto in media res” que parece não se apoiar sobre nenhuma realidade fora de si”, constituindo, ao contrário, “uma parte avulsa dessa própria realidade, como um pequeno resíduo duro das milhares de imagens e textos que compõem a trama do nosso cotidiano”.
Ora, tal consideração se aplica bem ao modelo ficcional de Demétrio Diniz. De um lado, o acontecimento ímpar, impulsionador, em meio à corrente dos fatos; do outro, a concepção sintética e a estrutura fechada do conto – tudo leva a crer – como que formam o tecido dessas imagens, e diria, dessas fabulações, que presidem o movimento inesgotável das vivências humanas.
De outra parte, se não há, em Demétrio Diniz, o já convencional experimentalismo da técnica em âmbito espaço-temporal ou mesmo na engenharia lexical em que muitos se comprazem, há, no entanto, certo fulgor na elaboração da frase, precisão dos termos, adequação de recursos expressivos, enfim, figuração da palavra, o que faz sua linguagem, em recorrentes passagens, alcançar o estatuto da mais legítima poeticidade. Se duvidar, é só ler e conferir. 
Hildeberto Barbosa Filho, in www.substantivoplural.com.br

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