Aprendi com Santo Agostinho que foi Santo
Ambrósio quem inventou a leitura silenciosa. Consta que até o século 4 as
pessoas liam em voz alta, vocalizando o texto, para que a maioria, analfabeta,
também pudesse usufrui-lo. A leitura, deduzo, parecia uma oração, não o ato de
introspecção que dela não consigo dissociar. Sou capaz de ler e escrever
ouvindo música instrumental, mas intromissões vocais costumam atrapalhar minhas
ideias, me desconcentram. Em determinadas circunstâncias, qualquer palavra
falada adquire a dimensão de uma algaravia. O silêncio é o meu hábitat mental
natural.
Não
me sinto um excêntrico. No mundo cada vez mais barulhento, cacofônico e
compulsivamente loquaz em que vivemos, a preferência pelo resguardo acústico
não caracteriza uma anomalia, justo o contrário, é anseio de muita gente. Não
chegaria ao exagero de Harold Cleaver, o epônimo protagonista de um romance de
Tim Parks, que jogou tudo para o alto e foi viver recluso no cume de uma
montanha no Tirol. Inutilmente, diga-se. Envolvido exclusivamente pela
sonoridade da natureza, passou a ouvir mais alto o pulsar do seu coração e o
ruído dos pensamentos. Parafraseando Villa-Lobos, o barulho de fora não tem
nada a ver com o barulho de dentro (da cabeça).
A
figura de Cleaver foi a primeira coisa de que me lembrei ao tomar conhecimento
do próximo ciclo de palestras organizado pelo prof. Adauto Novaes, “Mutações: O
Silêncio e a Prosa do Mundo”, que daqui a quatro dias se inicia no Rio e em São
Paulo. Também me lembrei de Hans Karl Bühl, protagonista de uma cômica parábola
de Hugo von Hoffmansthal, que descobre entender melhor a si próprio quando está
calado, da atriz muda de Quando Duas Mulheres Pecam, de Ingmar Bergman, e de
Kaspar Hauser.
Silêncio
e mutismo são dois temas correlatos que às vezes se cruzarão ao longo das 25
conferências programadas, quase todas centradas sobre a dicotomia (e a relação
dialética) entre fala/palavra e silêncio. Que eu saiba, Kaspar Hauser e seu
amedrontador mutismo não serão abordados, mas Hurbinek, o estranho menino mudo
de três anos de idade, vizinho de cama de Primo Levi em Auschwitz, sim – pelo
prof. Renato Lessa, que escolheu para discutir as sutis relações entre a
verdade e o silêncio.
Nunca
se falou tanto no mundo. Somos a civilização dos falastrões, da tagarelice dos
celulares, da conversa fiada online, do Twitter, do Facebook. Só nos Estados
Unidos registrou-se um aumento de quase 7 trilhões de palavras faladas depois
da invenção da internet.
“Nunca
se falou tanto, nunca se pensou tão pouco”, observa Novaes no texto de
apresentação do ciclo, que não pretende estabelecer um Fla-Flu entre a fala (“o
corpo do espírito”), sem a qual “seremos reduzidos a seres sem política, sem
tolerância, sem poesia, em síntese, sem o humano”, e a recusa a falar, mas
sobretudo refletir sobre a incapacidade contemporânea de aceitar o silêncio,
que está longe de ser uma negação da palavra, e, conforme irá lembrar o
foucaltiano Frédéric Gross, e não será o único a fazê-lo, também dá sustança ao
pensamento.
Ao
liberar nosso espírito “constantemente parasitado por ruídos de fundo,
saturados de informações constantemente renovadas, sempre cativado por imagens
ou textos que se sucedem numa tela”, o silêncio interior favorece a reflexão,
amplia a profundidade analítica. Silêncio e palavra são faces da mesma moeda,
“gestos que querem significar algo e estão mutuamente implicados”, sintetiza
Newton Bignotto, cuja palestra terá como eixo as experiências vividas por
escritores, músicos, pensadores e místicos que “preferiram o silêncio ao
burburinho dos signos como uma maneira de desvendar a natureza das descobertas
que almejavam comunicar”.
Até
por desconfiar do poder das palavras na deformação das ideias, Paul Valéry
recolheu-se a um longo silêncio intelectual e amoroso, durante o qual, porém,
produziu seus preciosos Cahiers. Não caberia compará-lo a Rimbaud, que desistiu
de escrever aos 20 anos, mas alguma afinidade entre ambos existe. Outros foram
mais radicais, silenciando-se com o suicídio (Kleist, Lautréamont, para citar
os dois destaques no pioneiro ensaio de Susan Sontag, A Estética do Silêncio)
ou sendo afinal “punidos” pela loucura (Hölderlin, Artaud). Mais exemplos
ilustram esse aspecto do silêncio como ato de rebeldia, resistência,
integridade e recusa a compactuar com o prosaico e a mediocridade em dois dos
primeiros seis estudos reunidos por George Steiner em Linguagem e Silêncio.
Pela
taxonomia de Abbé Dinouart, autor de L’Art de se Taire, existem dez espécies de
silêncio, do prudente ao estúpido. Para ele, o primeiro grau da sabedoria
consiste em saber calar-se; o segundo, em saber falar pouco e moderar-se no
discurso; o terceiro, em saber falar muito sem falar mal e sem muito falar. Não
conheço ninguém que discorde disso. Ludwig Wittgenstein na certa assinaria
embaixo.
Mais
até do que John Cage e sua, com perdão da palavra, emblemática peça “musical”
com 4 minutos e 33 segundos de silêncio, o filósofo vienense promete ser a
referência com maior trânsito entre os palestrantes. Quem conhece o sétimo e
último aforismo do Tractatus Logico-Philosophicus sabe por quê. “Sobre o que
não se pode falar, deve-se calar”, propõe o aforismo, a mais expressiva
denúncia dos limites da palavra, do inefável, do inexprimível, a mais manjada
iniciação filosófica ao silêncio.
Wittgenstein
e seu Tractatus serão meticulosamente explorados por um expert no assunto, o
prof. João Carlos Salles, da Universidade Federal da Bahia. O tratado,
publicado em 1921 e mais tarde criticado pelo próprio filósofo, estrutura-se
pela ausência de uma segunda parte, por sinal, a mais importante, segundo
Salles, e que justamente por isso “não foi nem poderia ser escrita, embora seja
seu ponto de equilíbrio ou, quem sabe, seu abismo”.
E agora, como Wittgenstein e Hamlet
propuseram, silenciemos.
Sérgio
Augusto, in www.estadao.com.br, de 10/08/2013
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