Na edição de agosto de 1928 Câmara
Cascudo publica na Revista de Antropofagia, porta-voz dos modernistas, e
um mês depois – setembro do mesmo ano – na Revista da Semana, Rio, um texto
ágil, erguido em estilo fragmentado, como se as palavras fossem flashes
luminosos. É uma descrição de Natal há 85 anos, quando tinha 35 mil almas, dois
jornais, as mulheres já votavam e o governador guiava automóvel e viajava nos
aviões do Aero Club. Leiam Cascudo. Bem humorado, a pintar num texto cheio de
ritmos o primeiro retrato de uma Natal moderna.
35.000
patriotas. Fundada em 1599. Nasceu cidade como filho de Rei é príncipe.
Padroeira: Nossa Senhora da Apresentação que veio dentro de um caixote, lento e
manso do rio. Século XVIII. Tem um rio e tem o mar. Campo da Latecòere. Tênis.
Cinemas. Autos. Cinco farmácias. Bispado. Dois jornais diários. As mulheres
votam. O Presidente guia automóveis e viaja de avião. O secretário mais velho
roda os quarenta anos. Sal de Macau. Algodão do Seridó. Cera de carnaúba.
Couros. Açúcar de quatro vales largos e verdes. Boiadão histórico que em 1799
mandava dezesseis mil cabeças para Pernambuco. Instituto Histórico. Escola
Doméstica numero um no Brasil.
Aero-Club-de-Natal com dois aviões e seis
campos no sertão. Grupo-Escolar, grupo-escolar, grupo-escolar. Todo o sertão se
estorce no polvo das rodovias. O pneu amassa o chão vermelho dos comboios
lerdos, langues, lindos. Poetas. Poetisas. Crônicas elegantes.
Avenidas abertas para todos os ventos. Se
escuros. Nem buracões sornentos de espanta-guri. Árvores aparadinhas estilo
Nuremberg. Ruas calçadas, macias no escorrego das descidas. Raros-raros “mi dê
uma esmola”. Associações de caridade. Meia grosa de grupos de Foot-Ball. Não há
Rotary-Club, nem Automóvel-Club, nem Street-Club, Radio mania.
- É o que lhe digo. Peguei os discursos
de propagando do Hoover.
-
O que está dizendo?…
-
Morros, areias, orós, mangues, siris e aratus grudados nas pedras. Pescaria em bote
com terra encoberta. Três botes destes foram ao Rio. Centros Operários.
Discursos, relatórios. Batalhão do Exército. Item da Policia. Musica aos
domingos nos jardins com autogiros perenes de soldados e criadas e vice-versa.
Sorvete, pirulito, folhado. Uma livraria e duas casas de livros.
-
Já chegou o ultimo livro de Ardel?
-
Não senhora. Temos aqui agora o grande Marden.
Não
há revistas nem Academia de Letras. Cidade pintada de sol com uma alegria de
domingo.
Jornais
do Rio. Política. Simpatias furiosas aos Prestes Júlio e Luís Carlos.
-
Você vai ver a saída de Minas…
-
Nem Pelége…
Noticias
de trinta horas, via até… Lazado. Sábados monótonos com cinza triste de
nada-fazer. Feijoadas heróicas. Pescaria de covo. À noite, pesca de aratu com
facho, nas praias longe – Areia Preta. Cajueiros, coqueiros, mongubeiras.
Bailes do Natal-Club. “É favor entregar esta sobrecarta na entrada”. “Toilette
preta”. Janeiro. Festa dos Santos Reis. Congos compostos e ganzás roucos e
surdeadores.
“Acorda
quem está dormindo
na
serena madrugada
venham
ver o Rei dos Congos
general
de nossa Armada”.
Dezembro. Lapinhas e Pastoris com músicas
de cem anos teimosos e recordadores.
A
remígio bate o galo
soltando
a voz maviosa”
Bois. Bumba-meu-boi pedindo cinco dedos
para riscar em papel aquelas toadas maravilhosas.
Novembro.
Festa da Padroeira. Irmandade dos Passos, soleníssima Confederação Católica.
Escola de Comércio. Atheneu. Colégio Pedro II. Luar impassivelmente romântico.
Serenatas. Violões gementes assanhando pruridos nostálgicos.
“Noites
nunca hei de ter como já tive
na
escuridão polar de teu cabelo”
Bó-nito!
Grog à frio. Magestic, Anaximandro, Cova da Onça. Risco de navalha rombuda.
-
Nem me fale! Pois este Jorge não escreveu dizendo que dava a certidão do
nascimento de Dom Antonio Felipe Camarão por cinco mil pés de laranja da Bahia?
Avenida
Tavares de Lyra. Cafés, prosa estirada à café manhoso.
-
Gostei de seu artigo!
-
Qual?
- Ontem, francamente… aquele… eu sei que
li… não estou bem lembrado… aquele…
Por Vicente
Serejo, in www.jornaldehoje.com.br,
de 03/08/2013
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