Seriam
ao todo umas trinta fotografias. Já nem me lembrava mais delas, e talvez que
ficassem para sempre ali, perdidas entre papéis inúteis que sabe lá Deus por
que guardamos.
Encontrá-las
foi, sem dúvida, pior e, se algum dia imaginasse que havia de passar pelo
momento que passei, não teria batido fotografia nenhuma. Na hora, porém, achara
uma boa ideia tirar os retratos, única maneira — pensei — de conservar na lembrança
os cantos queridos daquela casa onde nasci e vivi os primeiros vinte e quatro
felizes anos de minha vida.
Como
se precisássemos de máquina fotográfica para guardar na memória as coisas que
nos são caras!
Foi
nas vésperas de sair, antes de retirarem os móveis, que me entregara à tarefa
de fotografar tudo aquilo, tal como era até então. Gastei alguns filmes, que,
mais tarde revelados, ficaram esquecidos, durante anos, na gaveta cheia de
papéis, cartas, recibos e outras inutilidades.
Esta
era a escada, que rangia no quinto degrau, e que era preciso pular para não
acordar Mamãe. Precaução, aliás, de pouca valia, porque ela não dormia mesmo,
enquanto o último dos filhos a chegar não pulasse o quinto degrau e não se
recolhesse, convencido que chegava sem fazer barulho.
A
ideia de fotografar este canto do jardim deveu-se — é claro — ao banco de
madeira, cúmplice de tantos colóquios amorosos, geralmente inocentes, que eram
inocentes as meninas daquele tempo. Ao fundo, quase encostado ao muro do
vizinho, a acácia que floria todos os anos e que a moça pedante que estudava
botânica um dia chamou de "linda árvore leguminosa ornamental". As
flores, quando vinham, eram tantas, que não havia motivo de ciúmes, quando
alguns galhos amarelos pendiam para o outro lado do muro. Mesmo assim, ao ler
pela primeira vez o soneto de Raul de Leoni, lembrei-me da acácia e lamentei o
fato de ela também ser ingrata e ir florir na vizinhança.
Isto
aqui era a sala de jantar. A mesa grande, antiga, ficava bem ao centro, rodeada
por seis cadeiras, havendo ainda mais duas sobressalentes, ao lado de cada
janela, para o caso de aparecerem visitas. Quando vinham os primos recorria-se
à cozinha, suas cadeiras toscas, seus bancos... tantos eram os primos!
Nas
paredes, além dos pratos chineses — orgulho do velho — a indefectível
"Ceia do Senhor", em reprodução pequena e discreta, e um quadro de
autor desconhecido. Tão desconhecido que sua obra desde o dia da mudança está
enrolada num lençol velho, guardada num armário, túmulo do pintor desconhecido.
Além
das três fotografias — da escada, do jardim e da sala de jantar — existem ainda
uma de cada quarto, duas da cozinha, outra do escritório de Papai. O resto é
tudo do quintal. São quinze ao todo e, embora pareçam muitas, não chegam a
cumprir sua missão, que, afinal, era retratar os lugares gratos à recordação.
O
quintal era grande, muito grande, e maior que ele os momentos vividos ali pelo
menino que hoje olha estas fotos emocionado. Cada recanto lembrava um
brinquedo, um episódio. Ah Poeta, perdoe o plágio, mas resistir quem há-de?
Gemia em cada canto uma tristeza, chorava em cada canto uma saudade. Agora, se
ainda morasse na casa, talvez que tudo estivesse modificado na aparência, não
mais que na aparência, porque, na lembrança do menino, ficou o quintal daquele
tempo.
Rasgo
as fotografias. De que vale sofrer por um passado que demoliram com a casa?
Pedra por pedra, tijolo por tijolo, telha por telha, tudo se desmanchou. A
saudade é inquebrantável, mas as fotografias eu também posso desmanchar. Vou
atirando os pedacinhos pela janela, como se lá na rua houvesse uma parada, mas
onde apenas há o desfile da minha saudade. E os papeizinhos vão saindo a voejar
pela janela deste apartamento de quinto andar, num prédio construído onde um
dia foi a casa.
Olha, Manuel Bandeira: a casa demoliram,
mas o menino ainda existe.
Sérgio
Porto (Stanislaw Ponte Preta), in A casa demolida
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